Conflitos na República Democrática do Congo: quatro questões para entender a situação

Em 10 dias, cerca de 250 mil pessoas fugiram dos violentos conflitos; muitas passaram a viver em acampamentos insalubres e superlotados.

Acampamentos de pessoas deslocadas em Goma, na província de Kivu do Norte. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF

Os conflitos têm deslocado milhares de pessoas nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul, na República Democrática do Congo (RDC). Muitas passaram a viver em acampamentos superlotados e em condições insalubres, por isso Médicos Sem Fronteiras (MSF) se preocupa com a disseminação de doenças.

No final de janeiro de 2024, os violentos combates entre o grupo armado M23 e o exército congolês e seus aliados na província de Kivu do Norte, no leste da RDC, se intensificaram. Os combates chegaram agora à fronteira com a província de Kivu do Sul, causando novos grandes deslocamentos de pessoas. Desde março de 2022, mais de 1,6 milhão de pessoas* já foram forçadas a deixar suas casas, em uma região do país já devastada por 30 anos de conflito.

Aqui, Abdou Musengetsi, coordenador-médico adjunto de MSF no país, explica em quatro questões a atual situação na RDC e as necessidades médicas das pessoas na região.

Quais são as consequências diretas dessa nova onda de violência?

Nas últimas semanas, violentos confrontos no território de Masisi, na província de Kivu do Norte, levaram a um novo êxodo em torno da cidade de Sake e em direção a Goma, a capital da província. Em apenas 10 dias, cerca de 250 mil pessoas fugiram dos combates. Elas agora estão se abrigando com famílias anfitriãs e em locais de deslocamento não oficiais já existentes, assim como em novos locais, principalmente a oeste de Goma.

Nesses lugares, as famílias precisam se aglomerar em abrigos improvisados que oferecem pouca ou nenhuma proteção contra a chuva. Todos os dias, as pessoas nos dizem que é uma luta para conseguir comida suficiente e água potável – muitas vezes ficam sem nada. Centenas de pessoas são forçadas a compartilhar apenas um banheiro e não têm onde se banhar.

Abrigos improvisados no acampamento de pessoas deslocadas. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF.

Uma mulher que fugiu recentemente para Goma nos contou que deixou a cidade sem nada além de seus filhos e as roupas do corpo. Ela foi forçada a fugir várias vezes quando o conflito se espalhou. Agora, ela vive no acampamento, sofrendo todos os dias, mas não tem opção de voltar para casa, pois é muito inseguro.

Enquanto isso, os dois hospitais apoiados por MSF e vários centros de saúde apoiados pela organização no território de Masisi receberam um fluxo de pacientes feridos de guerra. Nos últimos dois meses, as equipes de MSF no hospital de Mweso, administrado pelo Ministério da Saúde da RDC, trataram cerca de 146 feridos de guerra, a maioria com ferimentos a bala e ferimentos causados por explosões.

Leia também: Ataque a hospital apoiado por MSF na RDC deixa uma paciente morta

As principais estradas de acesso ao norte, ao oeste e ao sul de Goma estão inacessíveis por causa da insegurança provocada pelos combates, por isso é extremamente difícil levar suprimentos a essas instalações de saúde. Isso também prejudicou gravemente o acesso humanitário e médico a centenas de milhares de pessoas no território de Masisi.

Paralelamente, os combates na fronteira entre Kivu do Norte e Kivu do Sul fizeram com que dezenas de milhares de pessoas fugissem principalmente para o sul, em direção à cidade de Minova, que já abrigava muitos deslocados. As pessoas estão se abrigando onde podem, em escolas e em dezenas de locais diferentes.

Muitas famílias que precisaram fugir dos conflitos na cidade de Sake estão abrigadas em uma escola. Durante o dia, para que as crianças possam estudar, as famílias ficam na varanda do prédio. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF

Algumas das estruturas de saúde que apoiamos na região foram sobrecarregadas com um número maior de pacientes que sofrem de doenças relacionadas à deterioração de suas condições de vida. Mas também estamos vendo mais casos de violência sexual e feridos de guerra. O hospital em Minova recebeu mais de 167 pacientes feridos desde 2 de fevereiro, incluindo várias crianças.

Em um único dia, 7 de março, a equipe de saúde recebeu 40 pessoas feridas e sete outras pessoas chegaram mortas às instalações. Os pacientes são obrigados a compartilhar leitos, e a equipe trabalha 24 horas por dia com recursos limitados, enquanto as balas passam muito perto – a linha de frente dos conflitos fica a apenas 5 km de distância.

Quais são suas maiores preocupações na RDC?

Em termos de saúde, tememos um novo surto de doenças, principalmente o cólera, já que os combates forçaram milhares de pessoas a se estabelecerem em locais superlotados e sem condições de higiene. Juntamente com a falta de acesso à água potável, isso está criando condições ideais para a disseminação do cólera. Já estamos lidando com o cólera em alguns acampamentos há alguns meses, e com o novo fluxo de pessoas chegando, é provável que o surto existente seja exacerbado.

Antes do ressurgimento desse conflito, a situação da saúde nessas duas províncias já era terrível, devido à baixa cobertura de vacinação entre crianças com menos de 5 anos de idade. A cobertura é a mais baixa em cerca de 30 anos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O mau funcionamento das estruturas de saúde, principalmente devido à escassez de medicamentos e à falta de profissionais de saúde treinados, também contribui.

As equipes de MSF apoiaram as autoridades locais na resposta às epidemias recorrentes de sarampo e cólera, que aumentaram no ano passado após os picos de deslocamento em massa. Também fornecemos apoio para ajudar a aumentar o acesso a cuidados de saúde gerais e especializados, especialmente em zonas de saúde mais remotas, como Masisi, Mweso ou Hauts Plateaux da zona de saúde de Minova.

Se o número de casos de cólera aumentar, quais são os riscos para a população?

O cólera não é uma doença nova no leste da RDC. Ela é endêmica, e casos esporádicos são regularmente relatados e tratados. No entanto, a situação agora é extremamente preocupante devido ao grande número de pessoas que vivem em locais de deslocamento superlotados nos últimos 18 meses, onde os níveis de higiene e de saneamento, assim como o de água potável, era evidentemente inadequado mesmo antes da recente chegada de centenas de milhares de pessoas recém-deslocadas.

Água, alimentos e utensílios domésticos são escassos no acampamento. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF

O aumento dos casos de cólera está diretamente ligado à falta de recursos de higiene e à falta de acesso à água potável e a instalações sanitárias, como latrinas e chuveiros limpos. Essa doença pode ser fatal se não for tratada a tempo. As crianças são as mais vulneráveis e podem morrer de cólera em apenas alguns dias. Dependendo da gravidade da doença, a maioria dos pacientes precisa de reidratação oral ou intravenosa rápida, mas algumas pessoas podem ser tratadas na comunidade com a criação de pontos de reidratação oral.

Nos últimos meses, as equipes de MSF trataram milhares de pacientes com cólera em locais de deslocamento dentro e perto de Goma. Desde o início do ano, em dois meses, 75% dos mais de mil pacientes que MSF tratou em nosso centro de saúde na área de deslocamento de Bulengo e no centro de saúde de Sake tinham acabado de chegar ao local e não tinham acesso a água limpa, latrinas ou produtos de higiene, como sabão, e estavam vivendo muito próximos a outras pessoas. Em um espaço de poucos dias, a população do local aumentou em 50%. Esses fatores contribuem muito para a rápida disseminação dessa doença altamente contagiosa.

As pessoas nos acampamentos estão vivendo em um ambiente superlotado, com alto risco de transmissão de doenças. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF

O que MSF está fazendo para evitar um surto de cólera?

Em resposta à completa falta de água potável, no ano passado MSF construiu nas margens do Lago Kivu uma estação de bombeamento e cloração de água, que bombeia e desinfeta até dois milhões de litros de água potável todos os dias. Também distribuímos centenas de milhares de galões de água potável por dia, com caminhões que vão para os locais de deslocamento, além de construirmos latrinas e chuveiros.

MSF distribuiu água por meio de caminhões-pipa em vários pontos do acampamento de Lac Vert, perto de Goma. Fevereiro de 2024. ©Marion Molinari/MSF

Essa, no entanto, é uma resposta emergencial e não é suficiente para atender às necessidades, ainda mais com os recém-chegados. É urgente que outras organizações humanitárias e autoridades congolesas respondam rápido com mais caminhões de água e com a construção de mais latrinas de emergência.

Quer ajudar MSF a continuar trabalhando em contextos como este? DOE!

Embora continuemos a vacinar e a tratar pacientes com cólera – com mais de 20 mil pacientes tratados em Kivu do Norte e Kivu do Sul somente em 2023 -, se as condições de higiene não melhorarem, nossa resposta médica terá pouco impacto. Dada a escala das necessidades atuais e o número de pessoas que vivem juntas em condições precárias, tememos que o cólera se espalhe muito rapidamente e que MSF sozinha não seja capaz de tratar todos os pacientes que adoecerem. Outras organizações humanitárias precisam intervir com urgência para evitar uma catástrofe sanitária.

*Relatório do Global Data Institute. Veja aqui em inglês.

Compartilhar