Contra sua vontade

Violência sexual e de gênero contra jovens e adolescentes no Haiti

No Haiti, o número de pessoas jovens – especialmente meninas e mulheres – que relatam ter vivenciado atos de violência sexual ou de gênero é preocupantemente alto, especialmente na populosa capital do país, Porto Príncipe. Porém, apesar da dimensão, esse problema ainda é frequentemente negligenciado. Violência sexual e de gênero é, muito provavelmente, reportada menos do que de fato ocorre, devido ao estigma e à vergonha, assim como ao medo de represália por parte do perpetrador ou da comunidade.

A atual disponibilidade de serviços para sobreviventes desse tipo de violência é insuficiente para lidar com o problema, especialmente no que diz respeito aos sobreviventes mais jovens. Apesar dos grandes esforços de atores da sociedade civil e de progressos em alguns setores, políticas e a capacidade geral de lidar com a situação não estão atendendo às necessidades dessas pessoas. Os sobreviventes muitas vezes são prejudicados por um sistema mal coordenado, que em teoria deveria oferecer a eles um pacote integrado de cuidados médicos e psicológicos, além de suporte social e proteção legal.

Em maio de 2015, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) se juntou a outras organizações que assistem sobreviventes de violência sexual e de gênero para abrir uma clínica especializada nesse tipo de assistência em Porto Príncipe. De maio de 2015 a março de 2017, a clínica Pran Men’m (Me dê a mão, em creole haitiano) ofereceu cuidados a aproximadamente 1.300 sobreviventes de violência sexual e de gênero.

Exposição de jovens a violência sexual e de gênero
Apesar de pessoas de todas as idades relatarem casos de violência sexual e de gênero no Haiti, meninas e mulheres jovens ainda parecem ser as mais vulneráveis. Pacientes com menos de 25 anos de idade representam a maioria dos sobreviventes tratados por MSF desde maio de 2015 (aproximadamente 77%). Estima-se que 83% das pacientes seja sobrevivente de estupro, e que 83% delas tenham menos de 25 anos de idade.

MSF está particularmente preocupada com o fato de que 53% dos pacientes atendidos na clínica Pran Men’m tem menos de 18 anos de idade. A maioria é sobrevivente de estupro e outros tipos de abuso sexual. O alto número de sobreviventes jovens ressalta a necessidade urgente de lidar com o problema de violência sexual contra menores, que são especialmente vulneráveis devido à sua idade.

Quatro em cada cinco menores tratados na clínica conhecem seus perpetradores. A maioria dos casos envolvia conhecidos da família e, algumas vezes (11%), membros da própria casa. Em Porto Príncipe, crianças e adolescentes são frequentemente deixados sozinhos enquanto seus responsáveis vão trabalhar ou atender alguma necessidade da casa. A maioria das crianças com menos de dez anos de idade (71% delas) foi abusada em lugares onde deveriam se sentir seguras. Além disso, um em cinco menores que chegam à clínica após sofrerem abuso sexual foi exposto anteriormente a algum tipo de violência sexual ou de gênero.

Cuidados médicos e psicológicos
Além dos impactos sobre a saúde física e mental, a violência sexual pode propagar o HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Também pode levar a uma gravidez indesejada. Esses riscos são reduzidos – ou até mesmo eliminados – quando os sobreviventes recebem cuidados médicos o mais rapidamente possível dentro das 72 horas seguintes à agressão. Contudo, apenas 58% dos menores tratados na clínica de MSF procuraram atendimento nesse período de tempo. Ao total, 45 grávidas menores de idade e 30 gestantes adultas não conseguiram usar métodos contraceptivos de emergência por terem chegado tarde demais à clínica.

Há muitos obstáculos para os sobreviventes que procuram cuidados médicos para violência sexual e de gênero. Por exemplo, 38% dos sobreviventes de estupro que foram à clínica de Pran Men’m chegaram entre seis da tarde e meia noite, quando a maioria das demais clínicas que oferecem cuidados para vítimas de violência sexual e de gênero estão fechadas. Além disso, a provisão de cuidados médicos em outras instalações de saúde é frequentemente incompleta devido à falta de suprimentos médicos. Medicamentos para a prevenção de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis, assim como métodos contraceptivos de emergência, devem ser disponibilizados imediatamente em todas as instalações de saúde.

Logo após o ataque sexual, os sobreviventes frequentemente ficam em estado de choque. O primeiro objetivo da assistência psicossocial para os sobreviventes é ajudá-los a restaurar a capacidade de seguir com suas vidas. Em alguns casos, um aconselhamento inicial ajuda a estabilizar essas pessoas e prepara-las para receber cuidados médicos. O aconselhamento feito a tempo e sessões de acompanhamento adequadas ajudam a prevenir consequências psicológicas a longo prazo.

Escassez de serviços para os sobreviventes
As consequências da violência sexual não são só físicas e psicológicas – são também sociais e econômicas. A violência sexual e de gênero afeta tanto as vítimas como suas famílias e comunidades. Os sobreviventes precisam de cuidados abrangentes, que incluem uma série de serviços de apoio.

A coordenação dos serviços existentes é um dos maiores desafios e atualmente está falhando em atender as lacunas de provisão de serviços em todos os seus setores. MSF trabalha com uma rede de organizações que oferecem serviços sociais e de proteção em Porto Príncipe. Algumas delas oferecem abrigos a menores, mulheres e famílias, mas os procedimentos de acomodação normalmente são demorados. Encontrar soluções seguras e de longo prazo e alternativas seguras de abrigo são uma das maiores e mais urgentes necessidades entre nossos pacientes.

Os pacientes mais vulneráveis devem ser transferidos a serviços sociais para receberem acompanhamento e assistência de proteção, a fim de evitar futuras exposições a violência ou abuso sexual. 67% dos pacientes de MSF precisam de apoio social. Destes, 49% precisam de proteção (incluindo abrigos seguros e serviços de proteção de crianças) e 28% são encaminhados para a assistência legal a fim de prestar queixas contra os perpetradores. Apesar das necessidades, serviços sociais e de proteção são frequentemente limitados pela falta de financiamento constante e mecanismos próprios de encaminhamento que garantam cuidados abrangentes.

Conclusão e recomendações
A violência sexual e de gênero no Haiti deve ser reconhecida e analisada como questão de saúde pública. Os serviços de prevenção devem ser ampliados em vários níveis e a acessibilidade a cuidados médicos e psicológicos para os sobreviventes – assim como serviços de apoio social e proteção – deve ser reforçada.

Os sobreviventes desse tipo de violência devem ter acesso adequado e oportuno a cuidados médicos e psicológicos em meio a um sistema que avalie as necessidades específicas dessa população particularmente vulnerável. Uma rede de fornecedores de serviços para sobreviventes de violência sexual e de gênero que seja eficientemente coordenada a nível local e nacional é urgentemente necessária para garantir que todos os sobreviventes que buscam assistência sejam propriamente encaminhados para serviços mais abrangentes. Doadores devem apoiar as organizações oferecendo soluções seguras de abrigo com financiamentos mais sustentáveis e confiáveis, a fim de garantir proteção aos sobreviventes mais vulneráveis.

É essencial que serviços multidisciplinares sejam disponibilizados a sobreviventes a fim de atender tanto às suas necessidades imediatas como às consequências de longo prazo da violência sexual e de gênero. Se os serviços de proteção não forem reforçados, a violência sexual e de gênero continuará sendo uma questão crítica no Haiti – especialmente para os jovens.

Veja a galeria de fotos com depoimentos dos pacientes.

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