Corrida contra o tempo na Rep. Democrática do Congo

Administrador brasileiro trabalhou por um ano no projeto responsável pelas respostas rápidas a epidemias e catástrofes naturais no país

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20/02/2017

Acabo de voltar da República Democrática do Congo (RDC), onde fiquei um ano em minha quarta experiência com Médicos Sem Fronteiras, depois de ter passado pelo Haiti, Turquia e República Centro-Africana. Esse imenso país africano é conhecido pelas suas paisagens estonteantes, pelo imponente rio Congo, mas também por suas recorrentes epidemias e pobreza histórica. A RDC apresenta um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, apesar de sua riqueza em recursos naturais. MSF já está no país há mais de três décadas, atuando em múltiplos projetos distintos com objetivo de levar assistência médico-humanitária à sua população.

Dentre esses inúmeros projetos criados ao longo dessa relação duradoura entre MSF e a RDC, há uma incitativa que se destaca pelo seu dinamismo e velocidade de resposta humanitária: o Pool d’Urgence Congo (PUC). Com mais de 20 anos existência no país, o PUC é responsável pela atuação rápida em casos de epidemias, catástrofes naturais e confrontos internos violentos no território congolês.

O funcionamento se dá por meio de algumas etapas distintas. Primeiramente, há o que chamamos de monitoramento e detecção, atividades conduzidas por cinco “sentinelas” espalhadas pelo país compostas de pessoal médico e logístico. Essas pessoas são responsáveis por manter contato próximo com as autoridades sanitárias locais, coletar informações de contexto e analisar dados epidemiológicos. É onde tudo começa. A partir do momento em que uma epidemia ou catástrofe natural é identificada em alguma região do país, a coordenação do PUC, que fica na capital Kinshasa, irá analisar os dados enviados e decidir se devemos ou não enviar uma equipe de exploração para a zona, dependendo da gravidade da situação. A exploratória é composta tipicamente de três ou quatro pessoas, entre médicos, enfermeiros, promotores de saúde e logísticos. Eles se deslocarão até o epicentro da crise e coletarão informações sobre o contexto e amostras de sangue para análise posterior em laboratório, para termos a confirmação biológica da doença. Algumas vezes, temos falsos alertas. Por isso, a etapa de confirmação no laboratório é crucial antes do lançamento de uma resposta de emergência.

Quando se decide por estabelecer uma atuação, ela envolve não somente dezenas de médicos e paramédicos, mas também uma enorme operação logística para garantir a chegada, a construção e a manutenção das instalações de saúde, o aprovisionamento de medicamentos, vacinas e equipamentos. Tudo começa no estoque central de Kinshasa, onde selecionamos tudo o que será transportado. Então, esses suprimentos são embalados e colocados em um ou dois aviões que em 24 horas já deve(m) estar pronto(s) para decolar junto com a equipe, composta tipicamente de aproximadamente 30 pessoas. Em seguida, utilizamos motos, canoas e as próprias pernas para alcançar o epicentro da epidemia, muitas vezes em regiões extremamente remotas do interior da RDC. Dependendo do isolamento da zona e da dificuldade de acesso, a chegada ao local pode demorar até 15 dias. Enfrentamos normalmente muitos desafios no caminho até a comunidade afetada: pontes quebradas, veículos atolados, floresta densa, calor escaldante, insetos. Isso sem falar na necessidade de atravessar, muitas vezes, regiões instáveis com conflitos armados ativos.
Uma vez que chegamos finalmente ao local, chega a hora de instalar os hospitais de campanha, incluindo a construção temporária de enfermarias, farmácias, salas de cirurgia, escritório, quarto para a equipe e tudo o que for necessário para o bom funcionamento da intervenção. Centenas de pessoas da região são contratadas para nos ajudar nesta etapa inicial bastante movimentada. É quando a logística de MSF mostra todo o seu valor.

Em seguida, as equipes médicas começam a atuar junto aos funcionários do Ministério da Saúde congolês – são centenas de pessoas trabalhando para, por exemplo, erradicar a epidemia da região. Normalmente, em três meses de atuação intensa, sem folgas ou domingos, a equipe consegue resultados bastante impressionantes, e a população fica livre da doença.
Nessas duas décadas de atuação, essa equipe incrível, composta de aproximadamente 80 pessoas sob contrato regular e outras 150 que podem ser mobilizadas a qualquer momento caso a equipe fique sobrecarregada, já fez centenas de intervenções e salvou centenas de milhares de vidas atuando em epidemias de cólera, ebola, sarampo, febre tifoide, malária, febre amarela, entre outras situações de emergência. O PUC é hoje uma referência de mobilidade e competência no mundo inteiro para MSF. Fazer parte dessa equipe experiente foi ao mesmo tempo uma honra e um desafio enorme.
Meu cargo era de gerente de Recursos Humanos (RH) na capital, sendo responsável pelos salários, contratações, treinamentos e desenvolvimento, recrutamento, medidas disciplinares entre outras funções. Eu tinha uma equipe de administradores – entre profissionais internacionais e congoleses –nos diferentes locais onde atuávamos que eram os representantes de RH nas equipes locais. Foi um grande desafio coordenar os recursos humanos espalhados em diferentes cantos desse país imenso, muitas vezes com difícil acesso à comunicação.

Durante este ano que passei nesse projeto, nós lançamos 18 respostas de emergência em diferentes partes do país, um recorde nesses 20 anos. Intervimos em mais de uma dezena de epidemias de cólera e tratamos 6 mil casos da doença; foram cinco epidemias de sarampo, em meio às quais vacinamos cerca de 500 mil crianças; e em uma resposta à febre tifoide, quase 3 mil pacientes foram tratados. Além de todas essas emergências, demos assistência a milhares de refugiados sul-sudaneses fugindo da guerra em seu país e tratamos de centenas de feridos de conflitos armados na capital do país, Kinshasa. São números tão impressionantes que eu ainda tenho dificuldade para acreditar que foram alcançados em apenas um ano.

MSF faz um trabalho incrível na República Democrática do Congo, e eu jamais esquecerei os momentos incríveis vividos nessa aventura que é o PUC, tampouco a honra de trabalhar com essa equipe tão competente e experiente. Mas entre todas as lembranças, as que guardarei com mais carinho são as centenas de “Merci mingui” e “aksanti sana” (“obrigado” nas línguas locais) que ouvimos de tantas pessoas felizes pela atuação de MSF nos lugares mais remotos e esquecidos do país.
 

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