COVID-19: “Tivemos de adaptar nossa maneira de trabalhar”

Saiba quais desafios MSF está enfrentando para combater a pandemia do novo coronavírus, enquanto se esforça para manter seus demais serviços médicos em funcionamento em dezenas de países

COVID-19: “Tivemos de adaptar nossa maneira de trabalhar”

O impacto da pandemia de COVID-19 foi sentido em cada um dos aproximadamente 450 projetos de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em mais de 70 países. Desde o início da pandemia, MSF tem duas prioridades: a primeira é manter os serviços médicos essenciais já existentes em funcionamento para as centenas de milhares de pacientes que contam conosco; e a segunda é nos prepararmos e respondermos efetivamente ao novo coronavírus. Diante de desafios de uma escala nunca antes vista, as equipes de MSF, assim como todos os profissionais de saúde no geral, tiveram que se adaptar rapidamente às novas realidades impostas por um mundo com a COVID-19.

MSF lançou projetos de resposta à COVID-19 em muitos dos países mais afetados pela pandemia, incluindo Itália, Espanha, França, Bélgica, Brasil e EUA. Ao mesmo tempo, nossas equipes do mundo todo têm trabalhado para dar continuidade aos serviços médicos regulares de MSF, enquanto se preparam para lidar com o impacto do vírus sobre as comunidades vulneráveis que atendemos – e tudo isso em meio a bloqueios e restrições de viagens que limitam o movimento de profissionais e suprimentos médicos.

“Os desafios têm sido enormes e tivemos de adaptar toda nossa forma de trabalho”, diz Brice de le Vigne, coordenador da força-tarefa de MSF contra a COVID-19. “Como uma organização humanitária internacional, nossa capacidade de atuação durante emergências normalmente consiste em podermos enviar equipes especializadas e suprimentos médicos para qualquer lugar, a qualquer momento. Porém, com as restrições de viagens, os lockdowns e as rupturas sem precedentes na cadeia global de equipamentos de proteção individual, medicamentos e materiais médicos, nossas equipes foram pressionadas a encontrar soluções fora da nossa maneira usual de operação para poder continuar atendendo pacientes.”

Efeitos devastadores
Embora a atenção do mundo esteja compreensivelmente voltada para o impacto direto da pandemia de COVID-19, é fundamental encarar essa crise de saúde de uma perspectiva mais ampla. Em muitos dos locais onde MSF trabalha – cujos sistemas de saúde já são frágeis e as pessoas geralmente vivem em condições extremamente precárias – o impacto indireto da pandemia pode ser catastrófico.  

“Conter a pandemia é, sem dúvidas, uma prioridade para todos. Mas deixar de lado nossos serviços médicos regulares e focar apenas no combate à COVID-19 nunca foi uma opção”, diz Kate White, ponto focal médico da força-tarefa de MSF contra a COVID-19. “Sabemos, por décadas de experiência trabalhando contra outras epidemias, que os efeitos indiretos no sistema de saúde podem ser tão, senão mais, devastadores do que o próprio vírus. Manter serviços de saúde essenciais disponíveis e acessíveis é vital para impedir que mais vidas sejam perdidas, seja por malária, sarampo, desnutrição ou complicações obstétricas.”

A pandemia de COVID-19 pode também reduzir ainda mais o acesso – já limitado – à assistência médica por pessoas em situação de vulnerabilidade, à medida que os recursos humanos e financeiros são reorientados para a resposta à COVID-19. Serviços de saúde podem ser reduzidos ou fechados para limitar o risco de transmissão, campanhas vitais de vacinação podem ser canceladas, enquanto profissionais de saúde da linha de frente correm o risco de adoecer ou morrer em locais onde já havia muito pouco pessoal médico.

Medo da contaminação
É possível que as pessoas adiem buscar atendimento médico devido à dificuldade de se deslocar durante o confinamento ou ao medo de serem infectadas pela COVID-19 em uma instalação de saúde. As equipes de MSF já observaram uma redução significativa no número de pacientes que chegam às nossas instalações – em alguns casos, até 50% – em projetos em Bangladesh, República Democrática do Congo (RDC), Afeganistão, Nigéria, Serra Leoa e Egito.

Para garantir que as instalações de saúde sejam locais seguros para profissionais e pacientes e não locais de transmissão do vírus, MSF implementou medidas específicas de prevenção e controle de infecções contra a COVID-19 em todas as nossas clínicas e hospitais e apoiou autoridades de saúde em muitos países para que pudessem fazer o mesmo em suas instalações.

“Em muitos dos lugares onde trabalhamos, o hospital ou a clínica de MSF pode ser a única opção de cuidados de saúde em centenas de quilômetros”, diz Kate White. “As pessoas precisam estar seguras de que, quando vierem até nós – seja porque estão com COVID-19, querem cuidar de seu filho com diarreia ou malária ou dar à luz –, elas não vão sofrer ainda mais do que já estavam sofrendo antes de virem.”

Além dos hospitais
As equipes de MSF têm trabalhado também fora dos hospitais, adaptando suas atividades médicas às necessidades específicas das comunidades. Embora a COVID-19 esteja na mente de quase todo mundo, ela pode não ser necessariamente o principal problema de saúde de uma determinada comunidade.

“Uma abordagem única não funcionará nessa pandemia”, diz Kate White. “Temos de nos envolver com as comunidades para entender quais são suas preocupações e ajustar nossas atividades de maneira a atender às necessidades de saúde mais prementes e reduzir simultaneamente os riscos de transmissão da COVID-19. Não faz sentido tentarmos oferecer um serviço ‘perfeito’ contra a COVID-19, se os picos de malária ou desnutrição são a principal causa de doença ou morte entre essa comunidade.”

Desafios insuperáveis
Infelizmente, em alguns casos, existem desafios insuperáveis, que nos impedem de continuar prestando assistência. Na Síria, em El Salvador, na Malásia e no México, nossas equipes tiveram de reduzir ou suspender temporariamente as atividades das clínicas móveis; no Iraque, suspendemos a admissão de novos pacientes no programa de doenças crônicas; em Monróvia, na Libéria, fomos obrigados a suspender novas cirurgias pediátricas devido à falta de pessoal, causada por restrições de viagens; no Paquistão, suspendemos as consultas para leishmaniose cutânea no Baluchistão e Khyber Pakhtunkhwa, além de fecharmos temporariamente uma maternidade em Peshawar; e em Zamfara, na Nigéria, interrompemos temporariamente a maioria das nossas atividades contra o envenenamento por chumbo.

Diante de tantas incertezas sobre a nossa capacidade de continuar garantindo o envio de equipes internacionais e o abastecimento de suprimentos médicos, incluindo EPIs, o lançamento de novas iniciativas, que haviam sido planejadas anteriormente, foi suspenso. Isso inclui a abertura de uma maternidade e uma pediatria em Qanawis, no Iêmen, onde mulheres e crianças continuam sofrendo com o impacto da guerra.

Soluções criativas
No mundo todo, as equipes de MSF têm tentado encontrar maneiras criativas de manter a assistência médica acessível e apoiar os profissionais de saúde da linha de frente a cuidar de suas comunidades. Tivemos algumas iniciativas notáveis, como: aumento das consultas por telemedicina; fornecimento de treinamentos on-line de prevenção e controle de infecções para funcionários de casas de repouso; campanhas de promoção de saúde em redes sociais; e gerenciamento de grupos de curadores tradicionais no WhatsApp.  

Reduzimos pela metade o número recomendado de consultas pré-natais para gestantes em nossas clínicas. Em nossos projetos de saúde materna em países como Nigéria, RDC, Serra Leoa e Bangladesh, nos certificamos de que as mulheres ainda recebam os cuidados de que precisam, estando em contato com pessoas de confiança em suas comunidades – como profissionais de saúde locais e assistentes de parto tradicionais – para identificar quando uma gestante precisa ir ao hospital por causa de complicações obstétricas.

Em nossos projetos de HIV, tuberculose, hepatite C e doenças não-transmissíveis em países tão diversos como África do Sul, Ucrânia, Paquistão e Camboja, reduzimos as consultas de rotina e distribuímos medicamentos essenciais aos pacientes por períodos mais longos (um a seis meses, dependendo do estado de saúde de uma pessoa), para que não precisem visitar uma unidade de saúde com tanta frequência. Ao mesmo tempo, asseguramos que os pacientes recebam acompanhamento por meio de consultas por telefone, aplicativos de mensagens e redes de suporte por pares.

Entre os grupos que correm maior risco de sofrerem complicações por causa da COVID-19 estão as pessoas com doença pulmonar subjacente, como tuberculose multirresistente a medicamentos (TB-MDR). Em Eswatini, a equipe de MSF está reduzindo os riscos de contaminação entre esses pacientes vulneráveis, aproximando o atendimento médico de suas residências e limitando as viagens desnecessárias de transporte público aos centros de saúde. A maioria dos 40 pacientes de MSF com TB-MDR agora está usando “terapia por vídeo-observação”. MSF deu smartphones aos pacientes para que eles possam se filmar tomando seus remédios e enviar o vídeo para ser verificado por uma enfermeira.

Enquanto isso, muitos dos serviços de saúde mental oferecidos por MSF, incluindo em El Salvador, na Palestina e na Índia, agora oferecem linhas telefônicas para pacientes novos e os que já estavam em tratamento, enquanto conselheiros e psicólogos fazem consultas por telefone. Na Caxemira, onde o lockdown por causa da COVID-19 impediu que as equipes de MSF conduzissem pessoalmente clínicas de saúde mental, o psicólogo clínico Ajaz Ahmad Sofi disse que o aconselhamento por telefone fez com que mais pessoas tivessem acesso ao serviço. “Vários dos novos pacientes que atendo dizem que estão evitando visitar um conselheiro porque têm medo de serem vistos por parentes, vizinhos ou amigos perto da clínica. Portanto, embora o lockdown tenha dificultado muito a vida de pacientes e profissionais, de certa forma permitiu que mais pessoas procurassem ajuda, enquanto nós conseguimos continuar prestando um serviço de saúde muito necessário.”

 

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