Cuidados médicos são alvo de violência no Sudão do Sul

Centenas de milhares de pessoas estão sem acesso à assistência devido ao desrespeito ao trabalho médico-humanitário no país

Enquanto cidades inteiras no Sudão do Sul sofrem ataques devastadores, cuidados médicos tornaram-se, também, alvo de violência, com pacientes sendo baleados em seus leitos, alas incendiadas, equipamento médico saqueado e, em um caso específico, um hospital inteiro destruído, de acordo com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). Centenas de milhares de pessoas tiveram a assistência essencial negada.

A equipe de MSF testemunhou as terríveis consequências dos recentes ataques armados e confrontos em Malakal, no estado do Alto Nilo, tendo encontrado pacientes assassinados dentro do Hospital-Escola da cidade. Em outra violação perturbadora de estruturas médicas desde o irrompimento do conflito, em meados de dezembro de 2013, uma equipe de MSF retornou a Leer, no estado de Unity, e encontrou o hospital completamente saqueado, incendiado e vandalizado. Grande parte da cidade apa-renta ter sido arrasada.

“Ataques a instalações médicas e pacientes são parte de um cenário mais amplo de ataques brutais às cidades, mercados e instalações públicas”, conta Raphael Gorgeu, coordenador-geral de MSF. “Esses ataques demonstram a completa falta de respeito com cuidados médicos e privam as pessoas mais vulneráveis de assistência essencial quando mais precisam.”

Cenas de horror em Malakal
Em 22 de fevereiro, equipes de MSF encontraram ao menos 14 corpos de pessoas mortas no complexo do Hospital-Escola de Malakal, dispersos entre os 50 a 70 pacientes que permaneceram na instalação, fracos demais ou muito idosos para fugirem em busca de segurança. Ao que tudo indica, diversos pacientes foram baleados e mortos em seus leitos. Muitas das alas do hospital, incluindo o centro de nutrição terapêutica para crianças desnutridas, foram incendiadas e houve saques generalizados por todo o hospital. MSF evacuou diversos dos pacientes em estado mais grave para a base da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS, na sigla em inglês) em Malakal para tratamento. Do total, treze pacientes foram vítimas de tiros.

“Malakal está deserta, com casas incendiadas por todo o canto e incontáveis corpos estirados pelas ruas”, afirma Carlos Francisco, coordenador de emergência de MSF na cidade. “Não encontro palavras para descrever a brutalidade em Malakal, que deixou a cidade saqueada e o povo completamente trau-matizado.”

Alguns dos pacientes evacuados por MSF para a base da UNMISS contaram que grupos armados entraram no hospital em 19 de fevereiro e atiraram em pessoas que não tinham dinheiro ou telefones celulares para dar a eles. Segundo o testemunho de sobreviventes, mais tarde, naquele mesmo dia, homens armados retornaram ao local e mataram pacientes em seus leitos e outras pessoas que haviam fugido para o centro cirúrgico em busca de segurança. Eles também estupraram mulheres e meninas.

Centenas de milhares de pessoas privadas de cuidados em Leer
Centenas de milhares de pessoas tiveram o acesso a cuidados médicos essenciais interrompido após o hospital de Leer ter sido saqueado e destruído entre o final de janeiro e início de fevereiro.

Quando o pessoal de MSF pôde retornar ao hospital de Leer, após semanas de insegurança na região, deparou-se com um cenário horroroso de equipamentos e prédios reduzidos a cinzas, frascos de medicamentos quebrados e espalhados pelo chão e equipamento cirúrgico esterilizado quebrado e descartado por todo o canto. Medicamentos, leitos e outros suprimentos também foram saqueados. Não restou um só leito no complexo.

“A população de Leer e de toda a região sul do estado de Unity sabia que podia contar com MSF para cuidados médicos essenciais, e, agora, essa certeza simplesmente não existe mais”, diz Raphael. “A confiança que é necessária para que possamos realizar nosso trabalho foi abalada e as vítimas são as incontáveis pessoas que sofrerão, e provavelmente morrerão, por quererem cuidados médicos.”

O hospital em Leer, inaugurado há 25 anos, era a única instalação de cuidados de saúde secundária na região, o que caracteriza uma situação grave para as cerca de 300 mil pessoas que vivem na região de seu entorno. Somente em 2013, mais de 68 mil consultas médicas foram realizadas, aproximadamente 400 pessoas foram submetidas a procedimentos cirúrgicos e 2.100 crianças desnutridas foram tratadas. Desde 15 de dezembro de 2013, quando os confrontos tiveram início no Sudão do Sul, até o dia 15 de janeiro de 2014, mais de 4 mil consultas foram realizadas e cerca de 170 cirurgias conduzidas até o fe-chamento forçado do hospital, no final de janeiro.  

“Os civis de Leer deixaram a cidade e fugiram da insegurança constante para viver em terríveis condi-ções na mata, e estão aterrorizados para voltar para casa”, conta Sarah Maynard, coordenadora de pro-jeto de MSF em Leer. “Mas mesmo que as pessoas voltassem amanhã, ou daqui a um mês, elas voltari-am para as ruínas do que foram um dia suas casas e estariam sem cuidados de saúde. E isso é catas-trófico para a população.”

Os 240 profissionais locais contratados por MSF permanecem escondidos na mata, batalhando para tratar os pacientes com suprimentos, que, rapidamente, estão chegando ao fim. A equipe reportou estar reutilizando curativos e tentando desesperadamente prestar assistência aos deslocados que ficaram ainda mais doentes depois de beberem água suja do rio e de comer lírios aquáticos, diante da falta de alimentos. MSF está explorando todas as possibilidades de prover cuidados de saúde para os desloca-dos e reabastecer suas equipes com suprimentos.

“Precisamos avaliar seriamente se podemos retomar o trabalho no hospital de Leer”, disse Raphael. “Isso demandará não apenas significativos investimentos em recursos, mas também dependerá do res-peito incondicional às nossas instalações médicas, pessoal e pacientes por parte de todos os envolvi-dos nos confrontos. Isso não apenas no estado de Unity, mas por todo o país.”

Cuidados médicos serem alvo de violência tornou-se padrão no Sudão do Sul
As atrocidades no hospital de Malakal e a destruição do hospital de Leer acontecem de acordo com um padrão perturbador de incidentes que afetam profissionais de saúde, pacientes e instalações apoiadas por MSF no Sudão do Sul:

• Em meados de janeiro, homens armadas roubaram e ameaçaram a equipe de MSF no comple-xo de Malakal, causando a suspensão temporária das atividades médicas de MSF na cidade.
• Em meados de janeiro, o complexo de MSF em Bentiu, capital do estado de Unity, foi saqueado em meio aos confrontos caóticos que aconteciam na cidade, o que levou MSF a desocupar o Hospital Estadual de Bentiu, deixando medicamentos e suprimentos com os próprios pacientes e seus cuidadores. Milhares de pessoas ficaram sem acesso a cuidados de saúde por semanas na cidade de Bentiu.
• Houve reportes de que pacientes foram mortos em seus leitos no hospital de Bor, capital do estado de Jonglei, durante confrontos em dezembro de 2013. No início de fevereiro, o pessoal de MSF visitou o hospital e encontrou os corpos de uma mãe e de seu filho em decomposição na caixa d´água da instalação. Embora o hospital esteja hoje em funcionamento e bem abastecido de suprimentos, há poucos pacientes nas alas, já que boa parte da cidade está vazia.

“Cuidados médicos são alvo de violência no Sudão do Sul”, diz Raphael. “Ao invés de redutos seguros para tratamento, os hospitais são, agora, alvo de ataque e brutalidade. São lugares a serem temidos ao invés de serem confiáveis, o que caracteriza uma completa inversão de seu propósito e papel. Centenas de milhares de pessoas estão precisando desesperadamente de abrigo, alimentos, água e cuidados de saúde no Sudão do Sul. A questão é: como prover ajuda neutra e efetiva nesse clima de completo des-respeito e medo?”

MSF atua na região que hoje constitui a República do Sudão do Sul desde 1983 e, atualmente, administra 17 projetos em nove dos dez estados do país, com projetos regulares em Agok, Aweil, Bentiu, Gogrial, Maban, Malakal,Nasir, Yambio, Lankien, Yuai, Pamat e Yida e quatro operações de emergência em Juba, Awerial, Malakal, Melut e Nimule. MSF responde a emergências, incluindo o deslocamento em grande escala, influxos de refugiados, situação de nutrição alarmante e picos de doenças como o sarampo, a malária, a diarreia aquosa e o calazar, além de prover serviços de saúde básicos e especializados. A organização também está oferecendo ajuda médico-humanitária a refugiados sul-sudaneses no Quênia, em Uganda e na Etiópia.

Nas primeiras dez semanas da crise atual, MSF realizou 103.614 consultas (que incluem atendimento a 40.925 crianças com menos de cinco anos), 3.767 internações (incluindo 2.282 crianças com menos de cinco anos), tratou 1.393 feridos de guerra, conduziu 755 cirurgias de grande porte e assistiu 2.157 partos. Atualmente, a organização conta com 333 profissionais internacionais e 3.330 sul-sudaneses atuando em seus projetos.

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