Desafios, medos e o estigma de trabalhar na linha de frente da COVID-19 na Índia

Desinformação foi um grande obstáculo para tratamento de pacientes na cidade de Patna

Desafios, medos e o estigma de trabalhar na linha de frente da COVID-19 na Índia

Smriti Singh trabalhou como coordenadora adjunta do projeto do centro de tratamento de MSF contra a COVID-19, em Patna, na Índia, entre maio e junho de 2020. Confira abaixo seu relato dos desafios enfrentados para combater o novo coronavírus no país:

A pandemia de COVID-19 representa um desafio único para os profissionais de saúde da linha de frente: encontrar um equilíbrio entre ajudar os pacientes, lidar com informações imprecisas sobre a doença e controlar seus próprios medos.

Há quatro meses, quando cheguei à cidade de Patna, o lugar onde nossa equipe iria instalar um hospital temporário contra a COVID -19, e que também se tornaria minha casa pelos próximos dois meses, percebi que a pandemia era mais complexa do que poderíamos imaginar e que poucos recursos foram alocados para lidar com fatores psicológicos que influenciam mudanças comportamentais relacionadas ao vírus.

Bihar, o primeiro estado onde MSF montou seu projeto de COVID-19 na Índia, é também o terceiro estado mais populoso do país, com apenas 11% de sua população vivendo em áreas urbanas. Desde março, cerca de 3,2 milhões de pessoas voltaram de vários lugares para suas cidades natais em Bihar em meio à pandemia.

Frágil infraestrutura de saúde

Com apenas 0,11 leito e 0,39 médico disponíveis para mil pessoas, o estado tem uma infraestrutura de saúde frágil, que pode facilmente ficar sobrecarregada com o aumento de casos. Bihar também tem a menor taxa de exames do país.

Em uma área tão densamente povoada, o acesso à comunicação rápida por meio de uma série de canais de mídia tem potencial para aumentar o risco de pânico entre as pessoas. A disseminação de informações e a geração de conscientização tornam-se aspectos críticos no combate à pandemia, considerando como a falta de conhecimento geralmente leva a rumores e informações incorretas.

Mesmo entre os profissionais da linha de frente, conhecer, entender e adaptar as medidas adequadas de prevenção e controle de infecções é algo que vem com um diálogo constante.

Um dos maiores desafios para nós foi desencadear uma mudança de comportamento entre as pessoas – pacientes e funcionários, que não se limitou apenas aos aspectos de distanciamento físico, higiene das mãos e uso de máscaras, mas para dissipar ativamente quaisquer equívocos e medos em torno da COVID-19 e lidar com nossos próprios problemas de saúde mental.

Medo e estigma associados à COVID-19

O complexo esportivo Patliputra de Patna, onde montamos o hospital, fica ao lado de um terreno vazio onde crianças da vizinhança jogam críquete. Um dia, uma bola caiu no outro lado, em nossas instalações. De repente, começamos a ouvir crianças gritando “corona, corona, devolva a nossa bola!”. Sim, éramos chamados de “corona”, um termo coloquial para COVID-19.

O que eu inicialmente achei engraçado foi, na verdade, um reflexo de como o estigma é perpetuado contra os profissionais da linha de frente e pessoas infectadas com COVID-19. Com quase 2,4 milhões de infecções relatadas, a Índia tem o terceiro maior número de casos de COVID-19 do mundo. À medida que o vírus se espalha, também aumentam o medo e o estigma, infligindo os ricos e os pobres e invadindo cidades e vilas.

Quando decidi trabalhar neste projeto, minha maior preocupação era como meus vizinhos reagiriam quando eu voltasse. Havia histórias suficientes na mídia sobre vizinhos assediando as famílias das pessoas que trabalhavam na linha de frente. Decidi deixar essa preocupação para trás e lidar com isso mais tarde. Mas não foi diferente em Patna.

Uma semana depois de nossa chegada, as pessoas que moravam nos arredores do complexo esportivo começaram a protestar nas redes sociais contra a instalação de uma unidade de tratamento contra a COVID-19 em sua localidade, temendo que isso pudesse levar à infecção. Muitos de nossos funcionários locais também foram solicitados a desocupar suas casas durante a noite, uma vez que seus proprietários descobriram que eles estavam trabalhando  na linha de frente da resposta à COVID-19.

O medo e o estigma em torno da pandemia também significavam que conseguir recursos humanos seria um grande obstáculo para nós. Alguns abandonaram o projeto no último minuto por medo da pandemia. Tratamos pacientes que foram expulsos de suas casas ou agredidos por seus vizinhos após terem sido testados positivos. O estigma obriga as pessoas a esconder doenças, evitar exames e adiar a hospitalização, o que muitas vezes leva a consequências graves.

Saúde mental, uma preocupação negligenciada

“Você tem a coragem que me falta”.

“Você é tão forte”.

“Estamos muito orgulhosos de você por fazer isso”.

Essas são algumas das mensagens que recebi de amigos quando saí para trabalhar no projeto. Para quem está de fora, as pessoas que trabalham na linha de frente na resposta à COVID-19 parecem fortes e resilientes diante do desconhecido. O que passa despercebido é que sua aparência de superfície calma é a única armadura que resta.

Para mim, trabalhar na resposta à COVID-19 significava que eu tinha que ser corajosa o tempo todo e não permitir que meus medos e preocupações afetassem meu trabalho. Ao mesmo tempo, para diminuir o risco de infecção, optamos por nos isolar socialmente. Isso significava escolher ficar longe de nossas famílias por um longo período e minimizar a interação social entre os colegas.

Esta interrupção significativa no apoio social – em nome de ajudar e proteger os outros – pode torná-lo um processo muito solitário e pode afetar profundamente o bem-estar mental. O medo e a paranoia se instalam e são ainda mais ampliados se alguém ao seu redor der positivo.

A situação é pior para os profissionais de saúde. Eles têm que lidar com os traumas e conviver com as decisões que são forçados a tomar em seus empregos. As pessoas que trabalham na linha de frente mal conseguem se controlar. Eu estava ansiosa e com medo. Meus colegas também. Todos nós tivemos problemas para dormir. O sentimento geral entre as pessoas de que os trabalhadores da linha de frente são corajosos é, na verdade, uma desgraça iminente para elas.

Muito mais do que uma crise de saúde

A pandemia de COVID-19 é muito mais do que uma crise de saúde. Tem o potencial de criar devastadores efeitos sociais, psicológicos, econômicos e políticos que deixarão cicatrizes profundas e duradouras.

Em nosso centro de tratamento, todos os dias, conselheiros de MSF passam horas conversando com os pacientes, ouvindo suas preocupações e entendendo a doença. Eles têm que observar ativamente os comportamentos e práticas dos pacientes e corrigi-los, quando necessário.

A pandemia levou as pessoas ao pânico e ao caos e, a menos que estejam municiadas com as informações certas, será difícil quebrar a cadeia.

À medida que a resposta evolui, e após avaliar o impacto imediato, a médio e longo prazos, é pertinente que os sistemas de saúde comecem a investir pesadamente em apoio psicossocial, conscientização e combate à desinformação como parte de sua estratégia para amortecer o impacto potencialmente devastador que o vírus pode ter sobre pessoas vulneráveis ​​e profissionais da linha de frente.”

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