Duelo de hepatites

A médica de MSF, Theresa Chan, fala sobre o desafio de tratar dois tipos de hepatites ao mesmo tempo

A hepatite pode ser causada por diferentes vírus. Mas o que acontece quando um paciente está infectado com mais de um?

Quando não estou atendendo pacientes na clínica, escrevo diretrizes sobre como devemos gerir pacientes cronicamente infectados com hepatite B e hepatite C. Eu chamo isso de duelo de hepatites. Não é algo com o qual eu já tive que lidar antes, porque nos Estados Unidos a incidência de hepatite B é baixa, embora existam muitos casos de hepatite C. Aqui na Ásia, há uma taxa de prevalência de 5-10% da hepatite B sozinha, o que a torna endêmica na região. Não surpreendentemente, estamos vendo 3,4% de nossos pacientes com ambas as infecções.

Qualquer infecção isolada pode causar cirrose ou carcinoma hepatocelular (um tipo de câncer de fígado), mas em conjunto o risco é ampliado. Os vírus causam doenças semelhantes, mas se comportam de formas diferentes no nível celular.

A hepatite B se esconde dentro da célula para se reproduzir, mas tem proteínas estáveis em sua superfície, o que significa que é fácil se vacinar contra ela; porém, uma vez que a infecção já está presente, o tratamento é difícil. A hepatite C se reproduz ao ar livre, o que facilita o tratamento, mas vem em seis genótipos e quase todos os sorotipos, o que dificulta a criação de uma vacina. É por isso que estamos fornecendo tratamento para hepatite C e aconselhando pacientes que não parecem ter sido infectados com hepatite B para serem vacinados: estamos lutando da melhor forma contra cada vírus.

Algumas pessoas têm evidências de ambas as infecções no momento do diagnóstico, o que abre uma gama de outros problemas. Para a maioria das pessoas com evidência de fibrose hepática ou cicatrização crônica, a maior parte da doença é causada pela porção de hepatite C no duelo de hepatites. Por isso, os pacientes devem ser tratados com medicamentos antivirais de ação direta (AAD). Eles são fáceis de serem administrados e têm poucos efeitos colaterais. Então deveria ser fácil, certo?

Errado. Em alguns pacientes com ambas as infecções, a hepatite C ativa suprime a atividade da hepatite B. A cura da hepatite C pode efetivamente remover a supressão e permitir que a hepatite B venha à tona, o que significa que o paciente troca uma infecção fatal para o fígado por outra, que é muito mais difícil de tratar.

Para piorar, a hepatite B tem sorologias realmente complicadas, o que na linguagem leiga significa que há uma série de exames de sangue relacionados ao diagnóstico. Alguns deles mostram anormalidades logo após a infecção; alguns só mostram meses ou anos após a infecção – e nada disso acontece dentro de um cronograma rigoroso. Então, mesmo que você tenha feito todos esses exames no seu paciente, você ainda pode não saber o que está acontecendo. É por isso que a maioria dos médicos, mesmo aqueles com muitos anos de prática, precisam procurar o diagnóstico de hepatite B todas as vezes que enfrentam o problema e quase todos nós em algum ponto de nossas carreiras dissemos "Eu não sei, vamos ficar de olho no paciente e ver o que acontece".

Isso não é uma opção no nosso programa de tratamento de hepatite C. Nosso objetivo é oferecer o tratamento de AAD para o maior número possível de pacientes com hepatite C, o que significa que temos uma clínica cheia todos os dias e não há muito tempo ou recursos para ficar indeciso sobre se a hepatite B de alguém é imunotolerante, imunoativa, inativa ou imunorreativa. (Isso rende um monte de discussões de hepatologia. Eu vou ter piedade de você e não me preocupar em explicar isso aqui.)

Estamos cogitando criar diretrizes que tratariam a hepatite B de forma preventiva em pacientes com marcadores para infecção ativa, iniciando o tratamento para B e C ao mesmo tempo e parando o tratamento com hepatite B quando a terapia com AAD estiver completa. Muitos pacientes com hepatite B isolada vencem a infecção sem maiores danos ao fígado. (Mais uma vez, é uma conversa para iniciados e eu vou poupar-lhe dos detalhes sangrentos.) Essa é uma estratégia que foi sugerida por algumas associações de especialistas, mas que não tem décadas de estudos para embasá-la. Como eu tenho me esforçado para aprender sobre o duelo de hepatites, percebi que esse é o tipo de pensamento inovador que você tem que levar em conta ao assumir um programa de tratamento em larga escala como o que MSF está oferecendo no Camboja. Porém, se não foi feito antes, você não tem como estar preparado para os problemas colaterais que surgem enquanto você coloca em prática a estratégia. Não temos soluções fáceis na manga.

Compartilhar