“Ele não sabia que ia sobreviver”

Em Histórias de MSF, Angela Giacomazzi, coordenadora de Recursos Humanos no Sudão, relata recuperação de paciente em estado grave com cólera

O paciente de MSF Aldokhri Idris Abdallah (no centro) com Angela Giacomazzi e Ahmed Abdalla Mohammed Adam, profissionais de MSF. © MSF

Um surto de cólera está assolando vários estados da região central e leste do Sudão, trazendo ainda mais riscos e mortes para pessoas já feridas pela guerra brutal que está em curso no país. O cólera é um desafio adicional à crise, em meio ao enorme deslocamento de pessoas, insegurança e dificuldades de acesso a cuidados médicos. A resposta humanitária diante dessas necessidades ainda é muito pequena.

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Quando uma emergência acontece, todos, sejam médicos ou não, geralmente precisam largar o que estão fazendo e trabalhar em conjunto para salvar vidas. Angela Giacomazzi é coordenadora de Recursos Humanos de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tanedba, no estado de Gedaref.

A seguir, Angela descreve a noite de 1º de setembro de 2024:

“Certa noite, eu estava trabalhando por volta das nove horas com alguns colegas. Fazemos plantões noturnos muito longos e iniciamos muito cedo pelas manhãs.

Recebemos um alerta de que um carro com cinco pacientes com suspeita de cólera estava chegando ao nosso hospital.

Infelizmente, no caminho para o hospital, uma das pessoas morreu. O quadro de saúde dos outros quatro pacientes era grave, mas o carro teve que retornar ao vilarejo com o corpo do paciente que havia morrido.

Uma ambulância foi buscar os pacientes, e enquanto isso a equipe e eu fomos preparar tudo o que precisaríamos para quando eles chegassem. O centro de tratamento de cólera já estava completamente lotado, então precisávamos encontrar novos leitos onde quer que pudéssemos.

Todos estavam de pé, prontos para atender a essa nova emergência.

Quando os quatro pacientes chegaram, percebemos que dois deles estavam em estado muito crítico. Um deles era uma criança que também estava com desnutrição. Crianças com essa condição podem ser mais vulneráveis a outras doenças e o cólera pode ser fatal.

Quando as vemos nessas condições, descobrimos uma força em nós mesmos que não sabíamos que tínhamos. Você se torna mais rápido, eficiente e se torna a melhor pessoa que poderia imaginar ser.

Tudo estava acontecendo automaticamente: todos estavam no lugar certo no momento exato, fazendo tudo o que era necessário para levar essas pessoas ao hospital e cuidar delas. Todos nós complementávamos as ações uns dos outros em uma corrida frenética contra o relógio. A criança estava mal, mas sua situação era estável.

O outro paciente, um homem adulto, estava em estado de choque, inconsciente. É assim que se morre de cólera: a desidratação faz com que o corpo entre em choque. Quando o corpo chega a esse ponto, depois de alguns minutos, já é tarde demais. É possível que você nunca mais retorne.

Tivemos apenas alguns minutos. Enquanto os médicos tentavam reanimá-lo, administrando litros de soro em suas veias, todos os outros profissionais da equipe estavam lá, prontos para prestar a assistência que pudessem.

Estávamos ficando sem suprimentos e sem equipe. Foi tudo muito intenso; naqueles cinco minutos, muita coisa aconteceu. Tudo foi muito rápido. Levei uma caixa de fluidos, a última caixa, para a enfermaria e, quando cheguei, vi que o paciente que estava inconsciente agora estava consciente, ele estava bem.

Aqueles cinco minutos entre sua chegada e o momento que ele recobrou a consciência. Com, não sei, 10 litros de infusão intravenosa, nós o salvamos. Eu estava com o corpo coberto de suor e lama. De repente, percebi que tínhamos conseguido, e que ninguém do grupo que havia chegado ao hospital havia morrido. Todos os quatro estavam estáveis.

Percebi que o paciente que estava inconsciente não sabia que sobreviveria. Mesmo estando acordado, ele ainda não sabia. Seu rosto e sua respiração demonstravam muito pânico e medo.

Com o olhar em busca de respostas, ele encontrou meus olhos. Eu sorri para ele e acenei com a cabeça, pois queria que ele soubesse que tudo ficaria bem. Ele olhou para mim e acenou em retribuição. E naquele momento, todos aqueles plantões pela manhã bem cedo e as noites longas fizeram muito sentido.”

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Alguns dias depois, Angela viajou para iniciar um processo de recrutamento para contratar mais profissionais para apoiar na resposta ao cólera no estado de Gedaref. No vilarejo para onde foi, Angela reencontrou Aldokhri Idris Abdallah, o paciente que ela viu recuperar a consciência.

Abaixo, Aldokhri descreve sua experiência:

“Quando eu estava doente, minha família me levou para o hospital do vilarejo e, em seguida, o médico do centro de saúde primária me encaminhou para o hospital de MSF. Quando cheguei lá [no centro de tratamento de cólera], eu estava inconsciente. Eles me receberam muito bem e começaram a me dar fluidos. Todos os médicos fizeram um trabalho muito bom, fizeram tudo por mim e fiquei bom muito rápido.

Agora estou totalmente recuperado, estou cem por cento bem. Entrei muito mal na clínica de MSF e saí de lá em ótimas condições e curado. Vou compartilhar essa mensagem com outras pessoas e, quando elas ficarem doentes, vou ajudá-las a ir à clínica.

Desejo tudo de bom para toda a equipe de MSF.”

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