Em Gaza “falta tudo, até a ideia de um futuro”

Psicólogo de MSF relata os traumas psicológicos enfrentados por crianças e adultos que sobrevivem aos horrores da guerra

Destruição nos arredores do hospital Nasser, em Gaza. Novembro de 2023. ©MSF

À medida que o horror implacável continua em Gaza, nossas equipes em Rafah e na Área Central estão testemunhando uma série de problemas de saúde mental entre crianças e adultos. Desde o início do ano, Médicos Sem Fronteiras (MSF) forneceu mais de 8.800 sessões de apoio psicossocial para pessoas em Gaza.

Davide Musardo, psicólogo de MSF, trabalhou em Gaza recentemente, oferecendo ajuda para que as pessoas consigam lidar com os diversos sintomas de saúde mental que enfrentam, enquanto vivem sob circunstâncias terríveis em meio ao bombardeio implacável. Abaixo, ele faz uma reflexão sobre as memórias assombrosas de pessoas que vivem uma realidade insuportável.

A guerra está por toda parte no hospital. O cheiro de sangue é insuportável.”
– Davide Musardo, psicólogo de MSF que trabalhou em Gaza

“Em algumas sessões (de saúde mental), a gente precisava gritar para ser ouvido, para superar o som dos drones e das bombas. E quando não havia confrontos do lado de fora, o som ao fundo eram os gritos das crianças no hospital. Crianças mutiladas, com queimaduras ou sem pais. Crianças tendo ataques de pânico, porque a dor física desencadeia feridas psicológicas, quando essa dor lembra a bomba que mudou sua vida para sempre.

Quando estão mais calmas, as crianças desenham drones e jatos militares. A guerra está por toda parte no hospital. O cheiro de sangue é insuportável. Esta é a imagem que trago de Gaza.

Nunca vivi nada parecido com o que vi em Gaza. Existem alguns traços comuns a todos os pacientes que vi lá. A pele escura, quase queimada, pois ficam expostos ao sol o dia todo. Perda de peso porque a comida é escassa. O cabelo é branco devido ao estresse desses meses de guerra. E todos eles estão com rostos inexpressivos. Um rosto que ilustra perda, tristeza e depressão. Muitas pessoas perderam tudo.

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‘Sinto falta das pequenas coisas. As fotos da minha mãe que morreu anos atrás, a xícara na qual eu tomava café. Sinto mais falta da minha rotina do que do meu lar desfeito’, me disse um paciente.

‘Não bebo um copo de água fresca há meses. Que tipo de vida é essa?’, me perguntou outro paciente.

Como seres humanos, somos propensos a contar sobre a dor e o sofrimento que enfrentamos. Mas como você conta uma história de luto para alguém que está passando pela mesma coisa que você? É por isso que uma das nossas prioridades é oferecer um espaço de escuta seguro para os nossos pacientes e para os médicos e enfermeiros palestinos que trabalham sem parar há mais de oito meses.

Aqui na Itália, excluímos fotos desfocadas ou fotos inúteis de nossos telefones. Em Gaza, as pessoas excluem fotos de membros da família que morreram durante os atentados, pensando que não vê-los mais aliviará o sofrimento.

Já vi pessoas desmaiarem ao receberem notícias de outra ordem de evacuação. Algumas pessoas mudaram de lugar até 12 vezes em oito meses. ‘Não mudarei mais minha barraca de lugar, posso morrer também’, ouvi pessoas dizerem.

Há pouca confiança na possibilidade de paz e reconstrução.”
– Davide Musardo, psicólogo de MSF que trabalhou em Gaza

Em Gaza, sobrevive-se. Mas a exposição ao trauma é constante. Falta tudo, até a ideia de um futuro. Para as pessoas, a maior angústia não é hoje – as bombas, os combates e o luto –, mas sim o que se segue. Há pouca confiança na possibilidade de paz e reconstrução, e as crianças que vi no hospital mostravam sinais claros de regressão [no desenvolvimento].

Embora eu tenha deixado Gaza, é como se eu ainda estivesse lá. Ainda posso ouvir os gritos das crianças queimadas. Precisamos de um cessar-fogo imediato e duradouro! Sem ele, será impossível curar as profundas feridas psicológicas.”

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