Encurralados pela morte em Gaza: relatório de MSF expõe a campanha israelense de destruição total

Em meio a ataques contínuos, cerco e bloqueio, Israel está aniquilando as condições de vida em Gaza

Complexo hospitalar de Al Shifa após 14 dias sob cerco das forças israelenses. Gaza, Palestina, 1º de abril de 2024. © MSF

Repetidos ataques militares de Israel contra civis palestinos nos últimos 14 meses, o desmantelamento do sistema de saúde e de outras infraestruturas essenciais, o cerco sufocante e a negativa sistemática de acesso à assistência humanitária estão aniquilando as condições de vida em Gaza, de acordo com um novo relatório divulgado por Médicos Sem Fronteiras (MSF), “Gaza: Vidas encurralas pela morte” (“Gaza: life in a death trap”).

• Leia o relatório “Gaza: vidas encurralas pela morte” em inglês completo aqui

A organização humanitária médica internacional faz, mais uma vez, um apelo urgente a todas as partes envolvidas por um cessar-fogo imediato para salvar vidas e permitir o fluxo de ajuda humanitária. Israel deve cessar seus ataques indiscriminados contra civis, e seus aliados devem atuar sem demora para proteger a vida dos palestinos e assegurar o cumprimento das regras do direito internacional para situações de guerra.

A ofensiva militar recente no Norte é uma ilustração crua da guerra brutal que as forças israelenses estão travando em Gaza, e estamos vendo sinais claros de limpeza étnica.”
– Christopher Lockyear, secretário-geral de MSF

“As pessoas em Gaza estão lutando para sobreviver sob condições apocalípticas, mas nenhum lugar é seguro, ninguém é poupado e não existe saída deste enclave destroçado”, disse Christopher Lockyear, secretário-geral de MSF, que visitou Gaza no início deste ano.

“A ofensiva militar recente no Norte é uma ilustração crua da guerra brutal que as forças israelenses estão travando em Gaza, e estamos vendo sinais claros de limpeza étnica à medida em que palestinos são forçados a se deslocar, encurralados e bombardeados”, afirmou Lockyear.

“O que nossas equipes médicas têm testemunhado no território ao longo deste conflito é consistente com as descrições feitas por um número crescente de especialistas legais e por organizações, concluindo que está ocorrendo um genocídio em Gaza. Embora não tenhamos autoridade legal para estabelecer intencionalidade, os sinais de limpeza étnica e a devastação em curso – incluindo assassinatos em massa, ferimentos severos e fortes danos à saúde mental, deslocamentos forçados e condições de vida impossíveis para palestinos sob cerco e bombardeios – são inegáveis”, completa Lockyear.

Após bombardeios em Khan Yunis, pessoas feridas são atendidas no Hospital Nasser. Gaza, Palestina, 11 de outubro de 2023. © MSF

Em resposta aos terríveis ataques efetuados pelo Hamas e por outros grupos armados em Israel em 7 de outubro de 2023 – nos quais 1.200 pessoas foram mortas e 251 foram tomadas como reféns – as forças israelenses estão esmagando toda a população de Gaza. A guerra total de Israel matou mais de 45 mil pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde, incluindo oito colegas de MSF. O número de mortes adicionais relacionadas à guerra é provavelmente muito mais elevado devido aos impactos de um sistema de saúde colapsado, surtos de doenças e o acesso severamente limitado a comida, água e abrigo.

As Nações Unidas estimaram anteriormente neste ano que mais de 10 mil corpos permaneciam soterrados sob os escombros. As forças israelenses impediram em diversas ocasiões a entrada na Faixa de Gaza de itens essenciais como comida, água e suprimentos médicos, assim como bloquearam, negaram ou atrasaram a assistência humanitária, conforme documentado no relatório. Cerca de 1,9 milhão de pessoas — 90% da população total da Faixa de Gaza – foram deslocadas de maneira forçada, muitas delas por diversas vezes.

Menos da metade dos 36 hospitais de Gaza estão sequer funcionando parcialmente e o sistema de saúde está em ruínas. No período de um ano coberto pelo relatório — de outubro de 2023 a outubro de 2024 — as equipes de MSF enfrentaram 41 ataques e incidentes violentos, incluindo ataques aéreos, bombardeios e incursões violentas em instalações de saúde; disparos contra abrigos e comboios da organização; e detenções arbitrárias de colegas por forças israelenses.

Profissionais médicos e pacientes de MSF foram forçados a evacuar hospitais e instalações de saúde em 17 ocasiões distintas, tendo que muitas vezes sair correndo para salvar suas vidas. Ocorreram hostilidades entre as partes em conflito perto de instalações médicas, colocando pacientes, cuidadores e equipes médicas em risco.

Fotografia capturada dentro do Hospital Nasser, em 13 de março de 2024. © MSF

Enquanto isso, as feridas físicas e psicológicas dos palestinos são imensas e suas necessidades continuam crescendo. Instalações apoiadas por MSF realizaram ao menos 27.500 consultas relacionadas à violência e 7.500 intervenções cirúrgicas. Pessoas estão sofrendo por ferimentos de guerra, mas também por doenças crônicas, agravadas quando não é possível ter acesso a cuidados de saúde e medicamentos.

Os deslocamentos forçados impostos por Israel levaram as pessoas a enfrentar condições de vida insuportáveis e insalubres, em um contexto em que doenças podem se espalhar rapidamente. Como resultado, equipes de MSF estão tratando um número elevado de pessoas com problemas de saúde como doenças de pele, infecções respiratórias e diarreia — e a expectativa é de que a incidência aumente com a queda das temperaturas durante o inverno.

Crianças não estão recebendo vacinas cruciais, tornando-as vulneráveis a doenças como pólio e sarampo. MSF tem observado um aumento no número de casos de desnutrição, apesar de ser impossível realizar um monitoramento completo do problema em Gaza devido à insegurança generalizada e à falta de medidas que assegurem a criação de zonas livres de conflito.

Por mais de um ano, a nossa equipe médica em Gaza tem testemunhado uma campanha implacável de destruição maciça, devastação e desumanização por parte das forças israelenses.”
– Christopher Lockyear, secretário-geral de MSF

À medida em que as opções de cuidados médicos em Gaza se reduzem, Israel tem tornado ainda mais difícil que pessoas possam ser evacuadas por razões médicas. Entre o fechamento da passagem de Rafah, no início de maio de 2024, e setembro de 2024, as autoridades israelenses autorizaram as evacuações de apenas 229 pacientes – o que corresponde a somente 1,6% dos que precisavam de assistência fora do território naquele momento. É uma gota em um oceano de necessidades.

A situação no norte de Gaza é especialmente grave após a recente ofensiva militar de Israel que transformou o local em terra arrasada, deixando grandes áreas despovoadas e matando quase 2 mil pessoas, segundo relatos. A parte norte da Faixa de Gaza, particularmente o campo de Jabalia, foi cercada novamente por forças israelenses desde 6 de outubro último. Autoridades israelenses reduziram dramaticamente a quantidade de ajuda essencial autorizada a ingressar no Norte. Em outubro de 2024, a quantidade de suprimentos que chegavam à totalidade do território de Gaza atingiu o menor patamar desde que a guerra escalou, em outubro de 2023: uma média diária de 37 caminhões humanitários entrou em outubro de 2024, muito abaixo dos 500 que ingressavam antes de 7 de outubro de 2023.

“Por mais de um ano, a nossa equipe médica em Gaza tem testemunhado uma campanha implacável de destruição maciça, devastação e desumanização por parte das forças israelenses”, disse Lockyear. “Palestinos foram mortos em seus lares e em leitos de hospitais. Eles foram deslocados à força repetidas vezes para áreas sem condições sanitárias ou de segurança. As pessoas não conseguem aceder nem às necessidades mais básicas, como comida, água limpa, remédios e sabão em meio a um cerco e a um bloqueio punitivo.”

Pessoas deslocadas em Rafah. Sul de Gaza, Palestina, 27 de dezembro de 2023. © MSF

MSF apela aos Estados, particularmente aos aliados mais próximos de Israel, para que cessem seu apoio incondicional ao país e cumpram sua obrigação de evitar um genocídio em Gaza. Há quase um ano, em 26 de janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenou que Israel tomasse “medidas imediatas e efetivas para permitir o fornecimento urgente de serviços básicos necessários e de assistência humanitária para endereçar as condições de vida adversas enfrentadas por palestinos na Faixa de Gaza”. Israel não adotou nenhuma ação relevante para cumprir a ordem da corte. Em vez disso, autoridades israelenses continuam bloqueando ativamente as ações de MSF e de outras organizações que tentam levar assistência a pessoas encurraladas sob cerco e bombardeios.

Estados devem usar sua influência para aliviar o sofrimento da população e permitir um aumento maciço da assistência humanitária na Faixa de Gaza. Como força de ocupação, as autoridades de Israel são responsáveis por assegurar a entrega rápida, segura e sem obstrução de ajuda humanitária em nível suficiente para atender às necessidades da população.

Em vez disso, o bloqueio e a contínua obstrução da entrada de ajuda por parte de Israel tornaram quase impossível que a população de Gaza tenha acesso a bens essenciais, incluindo combustível, comida, água e medicamentos. Ao mesmo tempo, Israel decidiu banir efetivamente a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA), que é a maior provedora de assistência, cuidados médicos e de outros serviços vitais aos palestinos.

MSF reitera seu apelo por um cessar-fogo imediato e sustentado. A destruição total da vida palestina em Gaza tem de cessar. MSF também está apelando por acesso imediato e seguro ao norte de Gaza para permitir a entrega de ajuda humanitária e suprimentos médicos a hospitais. Enquanto MSF continua fornecendo assistência que salva vidas nas regiões central e sul de Gaza, apelamos a Israel para que encerre seu cerco ao território e abra acessos terrestres vitais, incluindo a passagem de Rafah, para permitir um grande aumento da ajuda médica e humanitária.

O relatório de MSF nota que mesmo que a ofensiva militar de Israel contra Gaza terminasse hoje, seus impactos de longo prazo seriam sem precedentes, graças à escala da destruição e aos desafios extraordinários de prover assistência médica por toda a Faixa de Gaza. Um número impressionante de pessoas com ferimentos de guerra corre risco de infecção, amputação e de deficiência física permanente, e muitas vão necessitar de anos de cuidados de reabilitação. O impacto físico e o trauma mental cumulativos, causados por violência extrema, perda de familiares e lares, reiterados deslocamentos forçados e condições de vida desumanas, geram cicatrizes que vão perdurar por gerações.

 

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