“Faço minha parte para garantir que as comunidades de onde essas mulheres vêm as apoiem”

Em Histórias de MSF, Unity Enuebuke, coordenadora de enfermagem de MSF na Nigéria, compartilha sua experiência e sua alegria em ajudar na recuperação de pacientes com fístulas obstétricas.

Unity Enuebuke abraçando a paciente Halima Umaru na enfermaria do hospital de Jahun, na Nigéria. © Holger Vieth/MSF

Apesar de estar aqui há 10 anos, o meu trabalho ainda me leva a uma montanha-russa de emoções. Hoje, vou compartilhar a minha experiência e das pessoas maravilhosas que encontro todos os dias.

A alegria e a dor aparecem muito próximas no meu trabalho. Atuo em Jahun, uma cidade localizada no norte da Nigéria, num grande projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Hospital Geral de Jahun (uma instalação pública de saúde), onde administramos uma maternidade, a ala de cirurgia, o banco de sangue e uma enfermaria que trata mulheres com fístula vaginal. Nessa enfermaria, o estado emocional é particularmente intenso, e as pacientes são muito especiais para mim.

Sozinhas e estigmatizadas

As fístulas são ligações não naturais entre órgãos, nesse caso, entre a vagina e a bexiga ou entre a vagina e o intestino. Elas ocorrem, por exemplo, quando o nascimento de uma criança é obstruído¹ e uma cesariana não é efetuada a tempo: numa parada obstétrica, a mulher grávida fica em trabalho de parto durante vários dias. Uma vez que a cabeça do bebê está constantemente pressionando o tecido do abdômen, esse deixa de receber sangue de forma adequada e o tecido morre. As lesões internas resultantes fazem com que a mulher não consiga mais controlar a urina ou as fezes. Mas isso não é tudo.

Na maioria dos casos, o bebê morre durante uma parada obstétrica. Assim, as nossas pacientes não só vivem com as consequências físicas e psicológicas traumáticas da fístula, como perdem constantemente urina ou fezes. E elas são frequentemente isoladas socialmente e estigmatizadas devido ao odor resultante. É comum que seus maridos também se divorciem delas e, acima de tudo isso, há ainda a grande dor pela perda do filho.

As mulheres se colocam em nossas mãos com todos esses traumas e emoções. Muitas estão deprimidas, têm ansiedade e sentem muita vergonha”.

 Para elas, a nossa clínica é um espaço seguro e um lugar de esperança de cura e de reintegração social. E nós esperamos, assim como elas, poder ajudar – não só do ponto de vista médico, mas também psicológico.

Juntas, elas recuperam as forças

Quando caminho pela enfermaria para tratamento de fístulas de nosso hospital, vejo o quão longe chegamos desde que começamos nossa atuação aqui em 2008. Estamos em constante evolução e aprendendo com a experiência das cerca de 5.700 pacientes com fístula que admitimos e tratamos aqui até agora.

De uma capacidade de quatro leitos e apenas quatro cirurgias por mês, evoluímos para 55 leitos e 36 cirurgias por mês. E não foram só os números que mudaram – também evoluímos de apenas tratamento médico e cirúrgico para a aquisição de competências e apoio psicossocial. Como a capacidade de leitos na enfermaria ainda é limitada, e os tratamentos são relativamente longos, acabo conhecendo bem as pacientes durante a sua permanência. Gosto de ir à enfermaria, conversar com as mulheres e acompanhá-las em seu processo de recuperação.

A nossa abordagem de tratamento é muito holística e centrada na paciente, o que significa que preparamos as mulheres psicológica e fisicamente para as suas cirurgias durante um longo período e as acompanhamos no processo de cura.

Os meus colegas oferecem consultas de saúde e explicam antecipadamente às mulheres o que é importante para que o tratamento funcione, que devem seguir certas medidas de higiene e comer alimentos saudáveis para que seus corpos possam recuperar a força. Após as cirurgias, elas recebem fisioterapia para aumentar o fluxo sanguíneo na região pélvica. Isso pode melhorar o resultado da cirurgia em termos de fechamento bem-sucedido da fístula, bem como reduzir o risco de incontinência urinária persistente.

O aconselhamento psicossocial em paralelo, os grupos de apoio e as atividades comunitárias dão força, do ponto de vista da saúde mental, às pacientes e fazem com que elas criem fortes laços a longo prazo entre si. Sempre fico feliz em ver como as mulheres se tornam uma comunidade unida com o passar do tempo. Todas elas passaram por experiências difíceis e semelhantes, compreendem umas às outras, podem se apoiar, se aconselhar e conversar sem estigma ou tabu.

No final, há uma celebração e o desafio do retorno

Quando um grupo de mulheres termina o tratamento e pode voltar às suas comunidades, organizamos sempre uma pequena festa. Aumentamos o volume da música, cozinhamos comida deliciosa e celebramos juntos o que alcançamos.

Depois, quando as mulheres deixam o nosso projeto, também levam consigo novas aptidões que as ajudam a retornar às suas comunidades. Isso porque, durante o período de tratamento em nossa clínica, elas têm a oportunidade de aprender um ofício: como fazer massa ou tecer cestos e tigelas. Essas competências permitem a elas obter alguma independência financeira em suas comunidades e podem ajudá-las a se reintegrar nas redes sociais que perderam devido às suas fístulas.

Cada uma destas mulheres é uma embaixadora: se outras mulheres à sua volta forem afetadas pela fístula, ela sabe onde encontrar ajuda e obter tratamento, mas também sabe de quanto apoio emocional a pessoa afetada precisa”.

 A alegria e a dor estão muito próximas no meu trabalho

Mantemos contato com as nossas ex-pacientes muito tempo depois de seu tratamento conosco. Se voltarem a engravidar, elas devem nos procurar para cuidados preventivos e, se possível, dar à luz por cesariana, para que a formação de fístulas não volte a ocorrer.

Sempre que conseguimos tratar uma paciente e ela vai para casa curada, ficamos contentes – é uma vitória para nós, enquanto equipe. Mas, infelizmente, também acontece que algumas pacientes não podem ser curadas. Quando temos que mandá-las para casa ainda incontinentes, isso nos entristece, porque a sua vida social é perturbada. Elas não são recebidas com alegria pelos amigos e, muitas vezes, os maridos se divorciam delas, o que é um grande desafio. Essas mulheres sofrem muito com as consequências sociais que a fístula acarreta.

Sinto muito a dor dessas mulheres. E estou fazendo a minha parte para garantir que as comunidades de onde elas vêm as apoiem em vez de as rejeitarem”.

Através de várias campanhas, tentamos sensibilizar a população. Para chamar a atenção para o fato de que as mulheres que sofrem complicações durante o parto devem ser levadas para o hospital o mais rápido possível. Não têm de sofrer em casa e correr riscos para si e para o bebê.

Essa clínica é onde está o meu coração. Estou aqui há muitos anos, é onde pude crescer e me desenvolver. Graças à experiência que adquiri, pude assumir novos cargos e agora sou responsável por toda a equipe de enfermagem do projeto. Muitas pessoas trabalham aqui dia e noite para garantir que os pacientes recebam cuidados de alta qualidade. Apesar de, por vezes, não ser fácil acompanhar as mulheres em sua difícil jornada, oferecer apoio e fortalecê-las, esse trabalho também sempre me dá força.

Ver como muitas de nossas pacientes melhoram, recuperam a esperança e voltam às suas vidas sociais me emociona profundamente. E se eu pudesse desejar uma coisa, seria um mundo sem fístulas.

¹ Muitas mulheres morrem devido a esta complicação no parto e porque não recebem ajuda médica adequada. A Nigéria tem uma das taxas de mortalidade materna mais elevadas do mundo.

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