“Falta de atendimento médico também é uma forma de violência”

Antonio da Silva, coordenador geral de MSF em Cali, Colômbia, descreve cotidiano e desafios do trabalho humanitário junto à organização.

Entre uma viagem e outra, o brasileiro Antonio Aparecido da Silva, de 41 anos, coordenador geral da organização internacional de ajuda humanitária Médicos Sem Fronteiras, em Cali, na Colômbia, concedeu esta entrevista. Nascido em Santa Adélia (SP), ele é formado em Ciências Econômicas pela Instituição Moura Lacerda, de Ribeirão Preto, e pós-graduado em Cultura de Paz e Direito Internacional Humanitário pela Pontificia Universidade Javeriana de Cali, na Colômbia.

Cáli é conhecida mundialmente como epicentro do tráfico de drogas. MSF teve de negociar suas operações com os chefes do tráfico ou com guerrilheiros da Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)?

Antonio da Silva – Um dos principais pilares para a realização dos trabalhos e projetos de MSF é a independência e neutralidade na execução das atividades de ajuda médica. Levamos ajuda médica e humanitária às populações que necessitam ou estão impedidas de ter acesso aos serviços de saúde. Em nenhum momento ou circunstância MSF pede permissão e jamais se fazem acordos para atender comunidades que necessitam de ajuda. O que fazemos é informar toda a comunidade, com antecedência, sobre a realização das nossas atividades. Essa conduta faz parte da transparência com que a organização atua.

Por que um brasileiro coordena as operações de Médicos Sem Fronteiras na Colômbia? Conte-nos sua trajetória profissional até chegar a MSF.

Antonio da Silva – Cheguei na Colômbia com Médicos Sem Fronteiras porque queria trabalhar em um dos países próximos ao Brasil e assim ser mais fácil poder viajar para o Brasil quando necessário. Depois de trabalhar por quase 12 anos na rotina do setor financeiro, comecei a procurar um trabalho mais dinâmico e internacional. A oportunidade surgiu em 1996, quando eu participei de um processo de seleção organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), e fui escolhido, junto com outros três brasileiros, para fazer parte de um grupo de trabalho para a missão de paz que a ONU coordenava em Angola. Durante este período em que estive em Angola, mantive contato com várias organizações não governamentais. Ao terminar meu trabalho com a ONU, voltei para o Brasil e depois entrei em contato com a direção em Paris da Ação Contra a Fome, pela qual fui trabalhar no Sudão. A ACF realizava um projeto de tratamento nutricional para vítimas da desnutrição. Foi um trabalho que só durou seis meses. No Sudão, conheci Médicos Sem Fronteiras. E depois de haver retornado ao Brasil com o fim do meu trabalho com ACF, em 1999, fui trabalhar com MSF, outra vez em Angola e aqui estou deste então. Com MSF já trabalhei em Angola, Uzbequistão, Turcomenistão e agora como coordenador-geral para a Colômbia.

O senhor acredita que a presença de MSF ajuda a chamar a atenção para a situação lamentável destas populações deslocadas por causa de conflitos?

Antonio da Silva – Sem dúvida, a presença de uma organização como Médicos Sem Fronteiras contribui para alertar civis e autoridades em nível local, nacional e internacional sobre as tragédias humanitárias, assim como chamar a atenção para as necessidades médicas não atendidas por parte dos organismos estatais e por parte das pessoas responsáveis por implementá-los.

As condições de trabalho nas áreas pobres da Colômbia podem ser comparadas às favelas brasileiras? Em caso positivo, porque MSF não tem trabalhos semelhantes nos morros e favelas cariocas, por exemplo?

Antonio da Silva – Sem que se tenham em conta as diferenças no processo social e histórico que contribuiu e contribui para a formação das favelas no Brasil, e dos assentamentos ou invasões, na Colômbia, sim, eu posso dizer que as condições são praticamente as mesmas. As diferenças começam no fato de que, no Brasil, o sistema público de saúde ainda existe e funciona muito melhor que o sistema de saúde público da Colômbia. Aqui (na Colômbia), o setor público de saúde entrou em um processo de privatização, onde até os hospitais e centros de saúde do setor público se vêem obrigados a cobrar dos usuários pelos serviços que prestam. Na Colômbia, as dificuldades são imensas. Mesmo as pessoas que podem pagar por um plano de saúde enfrentam dificuldades em obter os medicamentos que necessitam. Outro fato é que na Colômbia a primeira causa de mortalidade é a violência com armas de fogo e armas brancas (facas, estiletes etc). Com uma média anual de quase 39 mil mortes violentas por ano, sem incluir aqui os acidentes de trânsito, podemos ver a magnitude do fenômeno da violência e sua pressão sobre os serviços de saúde devido à imensa quantidade de feridos que sobrevivem. O ponto em comum entre os dois é que em ambos Médicos Sem Fronteiras desenvolve projetos temáticos buscando identificar o que falta ou o que pode ser melhorado em termos de serviços ou necessidades médicas que faltam para a população de poucos recursos.

Que tipo de auxílio em infra-estrutura (água e saneamento) MSF dá à Colômbia?

Antonio da Silva – Temos um trabalho de apoio voltado para a prevenção e eliminação de doenças transmitidas pela água e tivemos de criar uns filtros artesanais devido à inexistência de filtros de cerâmica, como os que se utilizam no Brasil. Eram baldes de plástico onde se fixaram as velas dos filtros, importadas do Brasil. Depois, estes baldes com os filtros fixados no fundo são colocados sobre potes de cerâmica onde a água fica armazenada. Neste pote de cerâmica fixamos uma torneira. É um exemplo da criatividade que se há de ter quando não existe algum utensílio onde estamos trabalhando. Com respeito a saneamento, MSF desenvolve atividades para popularizar a construção de latrinas, assim como treinamos funcionários dos centros de saúde e hospitais para que estes profissionais estejam aptos para realizar o manejo correto e adequado do lixo hospitalar.

O senhor tem números da violência em Cali? Como funciona o programa de reabilitação e prevenção da violência em Aguablanca? E o serviço de assistência às vítimas?

Antonio da Silva – A violência em Cali tem números que ultrapassam a casa dos mil. Somente um dos hospitais, de nome Carlos Holmes Trujillo, que se localiza no distrito de Aguablanca, atendeu durante o ano de 2002 a 3.900 pessoas feridas em ocorrências em que envolviam armas de fogo e armas brancas. Em Cali, a média de mortes por violência é de 95/100.000 habitantes. O número de mortes em conseqüência da falta de atendimento médico é desconhecido e a falta de atendimento médico também é uma forma de violência. O programa, levado a cabo por MSF, que consiste em reabilitação física e prevenção de violência nasceu em 1998, devido à inexistência de um serviço de saúde que, ao mesmo tempo, tratasse um paciente com curativos de enfermaria e fisioterapia e também as conseqüências psicológicas resultantes de haver sofrido ou ser vitima de um ato de violência.

MSF conseguiu mudar alguma coisa nesta violenta realidade?

Antonio da Silva – Quando, em 1998, MSF deu início a este projeto no distrito de Aguablanca, Cali, falar de violência como um problema de saúde pública era um assunto que ninguém compreendia. Hoje, passados seis anos desde a abertura deste projeto, vemos que MSF é reconhecida em Cali como uma organização líder na prevenção de violência.

Como funciona o projeto de saúde sexual e reprodutiva que MSF transferiu ao governo de Cali?

Antonio da Silva – Consiste em programas de planejamento familiar, prevenção e informação sobre doenças sexualmente transmissíveis, juntamente com apoio psicológico para adolescentes grávidas. O homem não espera ter uma vida longa (a expectativa média de vida nas gangs urbanas de jovens é geralmente de 25 anos) e, então, ele não quer passar pelo mundo sem deixar um descendente. Por parte da mulher está o desejo de ter uma lembrança do parceiro para assim poder recordá-lo quando este tiver sido assassinado. Estes dois fatores combinados mostram a necessidade de oferecer um programa de saúde sexual e reprodutiva e o quanto é difícil obter resultados, principalmente no que diz respeito à prevenção da gravidez precoce.

Juliana Resende/BR Press

Foto: Gervasio Sanches

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