Gaza: “Nada se compara a uma explosão de guerra”

Anestesista fala sobre a dificuldade de tratar vítimas de bombardeios, já que os ferimentos atingem todo o corpo e envolvem múltiplas ocorrências, como fraturas, esmagamentos e queimaduras

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Já faz quase quatro anos que Liliana Andrade, 39 anos, dedica suas férias ao trabalho humanitário com Médicos Sem Fronteiras (MSF). A anestesista participou de projetos em países como Paquistão, República Democrática do Congo, Haiti e Sudão do Sul. O trabalho em meio a conflitos armados não era propriamente uma novidade para ela, mas sua segunda passagem pela Faixa de Gaza, em meio a um dos conflitos mais sangrentos da atualidade, foi completamente diferente de tudo o que conhecia, tanto profissional como pessoalmente. “Os ferimentos de vítimas de bombardeios são lesões muito diferentes das que já havia tratado. Acumulam-se grandes áreas do corpo queimadas, fraturas expostas, esmagamento de membros, traumatismos. Acontece tudo de uma vez”, conta.

Na primeira visita de Liliana a Gaza, a situação no país não era boa, mas pairava uma relativa tranquilidade no ar, e as equipes de MSF, assim como de outras organizações humanitárias, tinham liberdade para transitarem pela região. Desta vez, a história foi outra. A anestesista vivenciou um misto de emoções durante seus 55 dias no projeto: momentos de medo durante madrugadas ao som de bombas e explosões, ansiedade pela espera do próximo cessar-fogo e felicidade plena após o estabelecimento do cessar-fogo que se estende até o presente momento, sem prazo determinado para acabar. “Todo mundo chorou. Ficamos muito emocionados por estarmos ali, naquele momento. Você consegue ver o que é a felicidade de um povo. Não é qualquer comemoração; é a vida deles que está em jogo”, afirma Liliana.

De volta de Gaza no início de setembro, ela detalha alguns momentos de sua mais recente experiência na entrevista a seguir.

Quais as principais diferenças que você observou em Gaza nos últimos dois anos?
Por mais que Gaza seja sempre perigoso, não senti isso da primeira vez em que estive lá, em 2012. Naquela ocasião, eu estava em um projeto no sul, de cirurgia reconstrutiva. Houve questões de segurança, claro, relacionadas com a chegada em Israel, a passagem pela fronteira, mas podíamos sair, a locomoção era permitida. Agora, era de casa para o hospital e do hospital para casa. Só depois do cessar-fogo por tempo indeterminado que pudemos ver a cidade. Durante boa parte do tempo, havia o risco de explosões, o barulho de bombas era muito frequente. Se em atividade, concentrados no paciente, dentro do centro cirúrgico sem janelas, a gente não ouvia. Mas à noite, sem muito barulho na rua, no meio da madrugada, dava para ouvir tudo com mais clareza. O estresse emocional, psicológico, foi muito grande, desde o momento da decisão de participar desse projeto com MSF. Significava mesmo estar indo para a guerra.

E as necessidades médicas dos pacientes, se comparadas às de pessoas que você atendeu em meio a outros conflitos armados?
A minha experiência em zonas de conflito era diferente. Não tinham feridos por bombas, mísseis, foguetes. Nada se compara a uma explosão de guerra. Os ferimentos de vítimas de bombardeios são lesões muito diferentes das que já havia tratado. Acumulam-se grandes áreas do corpo queimadas, fraturas expostas, esmagamento de membros, traumatismos. Acontece tudo de uma vez. Atendi uma criança com uma fratura no fêmur, bem próxima da raiz da coxa. A energia necessária para se gerar uma lesão daquela é uma coisa absurda, um trauma muito violento. O paciente queimado, por si só, já é bastante trabalhoso,e com essas lesões ficava ainda pior. Era muita coisa: queimado e com o tórax aberto, por exemplo, a ponto de dar para ver as costelas.

Muitas das pessoas que estavam trabalhando com você eram profissionais locais, que vivem ali. Como eles reagiam ao que estava acontecendo?
Uma coisa é a gente estar lá, com MSF, sabendo que nossos amigos e parentes estão a salvo. Outra coisa são eles, trabalhando sabendo que suas famílias estão em risco.Em diversos dias, muitos deles não iam trabalhar, porque não era possível se locomover até o hospital de forma segura. O próprio coordenador médico, Abu Abed, teve que levar a família para o escritório de MSF, e estava muito tenso. Um enfermeiro, que tem três filhas pequenas, mentia para as meninas: ligava música em meio às explosões e dizia que era tudo parte de um teatro, para elas não sentirem aquela realidade. A história dele me emocionou.

E como eram os procedimentos de segurança para profissionais internacionais?
Tínhamos que estar sempre juntos, aguardando o carro de MSF. Só nos movimentávamos se houvesse permissão. Na casa em que estávamos, havia um quarto de segurança para onde íamos quando começavam os bombardeios. Acredito muito nos procedimentos de segurança de MSF. A organização mantém um bom relacionamento tanto com o governo de Israel quanto da Palestino e somos muito respeitados, o que é um grande diferencial.

Houve algum paciente que tenha te marcado mais?
O dia mais emocionante foi quando encontrei um paciente que tratei em 2012. Ele fora vítima de uma explosão aos sete meses, e fez várias cirurgias quando tinha três anos. Eu o via quase todos os dias no projeto de cirurgia reconstrutiva de MSF. No meu último dia no projeto, pedi à mãe dele que o dissesse, em inglês, que eu estava indo embora. Fiquei de joelhos, à altura dos olhos dele, e ele me disse “I love you, Lili”, e eu comecei a chorar. Tive a sensação de que nunca mais o veria. Quando cheguei em Gaza novamente, perguntei por ele e, um dia, para a minha surpresa, encontro o garotinho me esperando ao voltar do hospital. Disse que se lembrava de mim e eu fiquei toda emocionada.

Como foi a experiência de vivenciar o início e o fim de cada cessar-fogo nesse período?
Quando havia a expectativa de um cessar-fogo temporário, as equipes médicas eram enviadas ao hospital para trabalhar normalmente, mas nos preparávamos para um aumento no contingente de pacientes logo que o período de paz terminasse. Pairava uma enorme ansiedade no ar, o receio do que estava por vir. Não sei se voltarei a sentir isso. Torcíamos muito, assim como toda a população, obviamente, pelo anúncio de um cessar-fogo por tempo indeterminado. E, quando isso aconteceu, foi incrível. Todo mundo chorou. Ficamos muito emocionados por estarmos ali, naquele momento. Você consegue ver o que é a felicidade de um povo. Não é qualquer comemoração; é a vida deles que está em jogo.

E você voltaria para Gaza?
Claro.
 

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