Gaza: “Permanecer vivo é apenas uma questão de sorte”

Ricardo Martinez, coordenador de logística de MSF, relata o que testemunhou durante quatro semanas de trabalho em Gaza.

Clínica apoiada por MSF em Khan Younis. ₢ Mohammed ABED

Ricardo Martinez, coordenador de logística de Médicos Sem Fronteiras (MSF), passou quatro semanas trabalhando em Gaza. Nesta entrevista, ele relata o dia a dia da população, que vive sob o medo dos bombardeios incessantes e da escassez de recursos básicos, e enfatiza o trabalho fundamental dos profissionais palestinos: “Eles estão realmente trazendo esperança no meio de um pesadelo”.

Sabemos que a situação humanitária em Gaza é terrível. O que você testemunhou?

“Em primeiro lugar, é necessário um cessar-fogo imediato e contínuo em Gaza. Mas também insisto em alertar para a falta de água e saneamento em Gaza. Neste momento, tenho quase certeza de que, a longo prazo, isso poderá ser tão perigoso quanto os bombardeios e matar tantas pessoas quanto.

O sistema de água não está mais funcionando, entrou em colapso total. As pessoas estão sendo levadas ao limite, tendo que lutar por sua sobrevivência. No máximo, as pessoas têm um litro de água por dia – para beber, lavar e cozinhar. Há apenas um chuveiro para cada 500 pessoas. As que conseguem tomar banho são consideradas “sortudas”. No sul de Gaza, nossas equipes estão distribuindo de 50 a 60 metros cúbicos de água por dia, mas isso é apenas uma gota no oceano.

No sul de Gaza, os lugares estão tão superlotados que parece que estamos em um estádio de futebol superlotado. Com tantas pessoas usando os mesmos poucos banheiros e sem combustível para bombear a água, vi o esgoto correndo para as ruas onde os vendedores estão trabalhando, onde as crianças brincam e se molham na água imunda. É possível imaginar o impacto disso para a saúde das pessoas.

O que quer que as pessoas queiram fazer, elas precisam planejar com antecedência: é preciso pensar, planejar e organizar, e aí pessoa descobrirá se está “com sorte” ou não. Quer ir ao banheiro? Quando e onde ir, já que há centenas de pessoas na fila de um banheiro? Acho que não preciso entrar em mais detalhes sobre como as pessoas estão sobrevivendo”.

As pessoas em Gaza têm combustível ou eletricidade?

“Em alguns lugares, não há combustível ou eletricidade. Isso está afetando tudo. Sem combustível, os moinhos não funcionam, então ninguém tem trigo – sem trigo, não há comida. Os caminhões vindos do Egito estão descarregando a ajuda humanitária para os caminhões em Gaza, mas, sem combustível, esses caminhões não conseguem se deslocar e distribuir a ajuda.

Vimos a devastadora perda de vidas causada pela falta de combustível nos hospitais, com geradores que não funcionam e médicos impossibilitados de salvar as vidas das pessoas. Os hospitais se tornaram vilarejos, com pessoas vivendo nos corredores”.

As forças israelenses têm ordenado repetidamente que as pessoas evacuem locais dentro de Gaza. Em 3 de dezembro, MSF teve que fechar sua clínica na cidade de Khan Younis, no sul de Gaza, após uma ordem de evacuação da área. Você pode descrever o que aconteceu?

“As forças israelenses anunciam as ordens de evacuação por meio de um site militar lançado em 1º de dezembro. Certo dia, uma área no mapa é declarada uma “zona vermelha”, o que significa que ela será alvo. Lembre-se de que quase não há eletricidade em Gaza, ou seja, não há Internet. Como você consegue saber se precisa sair?

Sabíamos que era apenas uma questão de tempo até que a área em que estávamos trabalhando recebesse uma ordem de evacuação. Tínhamos conversado sobre isso apenas dois ou três dias antes. Então, em 3 de dezembro, fomos obrigados a fechar nossa clínica e deixar Khan Younis. Naquela manhã, eu fiquei encarregado da logística para nos levar a alguns quilômetros em direção ao oeste. Para mim, esse foi o dia mais doloroso que vivi durante meu tempo em Gaza.

Comecei a arrumar os carros, cuidando da logística e me certificando de que tudo estava pronto.  Foi de partir o coração: fugir e ter que olhar para os colegas palestinos e vizinhos que estiveram conosco o tempo todo, nos ajudando em tudo, e saber que muito provavelmente eu nunca mais os veria. Não havia tempo para agradecer a todos eles pelas coisas boas que haviam feito por nós. Para dizer a verdade, eu estava envergonhado.

Mas, na realidade, nenhum lugar é seguro em Gaza. Lembro-me de ter ido a um lugar com meu colega Omar, um supervisor de logística palestino, que havia sido destruído após a nossa visita no dia anterior. Ele me disse: ‘Veja isso, Ricardo, estivemos aqui ontem e agora veja os escombros’. Quem poderia nos ter avisado para não irmos até lá porque seria bombardeado? Ninguém. Ficar vivo é apenas uma questão de sorte. Esse foi um dos seis lugares diferentes que foram destruídos logo depois que os visitamos – seis lugares transformados em escombros. Escolas: desapareceram. Escritórios: se foram. Residências: destruídas. Usinas de tratamento de água: se foram”.

Qual foi a reação das pessoas em Gaza à trégua temporária que ocorreu de 24 a 30 de novembro?

Lembro-me muito bem de quando começou a pausa do bombardeio. Naquela manhã, no momento em que o relógio marcou sete horas, comecei a ouvir cânticos, cantos e gritos de alegria. Naquele dia, finalmente chorei. Chorei porque vi as pessoas muito felizes. Mas isso durou apenas alguns dias. A trégua terminou às sete horas da noite [do dia 30 de novembro] e, às 19h03, o inferno foi desencadeado novamente.

Por um curto período, as pessoas puderam visitar suas famílias. Isso foi o mais importante para todos. Alguns foram para o norte de Gaza e aproveitaram para passar os dias com seus entes queridos.

Ao mesmo tempo, [a guerra] não havia acabado: outras pessoas aproveitaram o momento para enterrar os mortos. Muitos foram recolher os cadáveres de pessoas cujos corpos estavam apodrecendo nas ruas – alguns por quase dois meses. Você consegue imaginar o cheiro e a dor?”

As equipes de MSF estão oferecendo cuidados médicos de emergência e doando suprimentos médicos para hospitais e clínicas em Gaza. Você poderia descrever como MSF está conseguindo fornecer ajuda nessas circunstâncias?

“Quando cheguei a Gaza, ficou muito claro que qualquer impacto do trabalho realizado é unicamente devido à nossa dedicada equipe palestina. Desde o primeiro dia, eles têm feito de tudo para continuar salvando vidas. Eles estão realmente trazendo esperança no meio de um pesadelo.

A maioria dos nossos profissionais foi desalojada de suas casas e perdeu entes queridos. Tragicamente, a brutalidade que está acontecendo agora não é novidade para eles – eles já passaram por isso antes. Eles sabem que podem morrer a qualquer momento, mas ainda assim nos cumprimentam todas as manhãs com um sorriso. E quando você pergunta como eles estão, eles respondem: ‘Estou bem, ainda estou vivo’.

Nunca me esquecerei de quando ainda estávamos trabalhando em nossa clínica em Khan Younis. Eu acordava às seis horas da manhã e ia para a clínica. Todas as manhãs, Ishaq, membro da nossa equipe, abria a porta e me cumprimentava com um enorme sorriso no rosto. Eu pedia desculpas por tê-lo acordado, mas ele me tranquilizava: ‘Não, não, Ricardo, eu acordei há meia hora. Seja bem-vindo! Eu estava esperando por você’.

Assim como Ishaq, muitos dos membros da nossa equipe estão se certificando de que aqueles de nós que vêm de fora de Gaza tenham tudo de que precisam, desde nos ajudar a recarregar nossas lanternas, até ter comida e fazer com que a gente se sinta bem-vindo. Eles se preocupam não apenas com seus pacientes, mas com todos ao seu redor. Eles lhe dirão: ‘Quero ajudá-lo, preciso ajudá-lo porque quero ajudar meu povo’.

Ao mesmo tempo, eles continuam se perguntando: ‘Por quê? O que fizemos para merecer esse castigo? Por que o mundo se esqueceu de nós?’”.

 MSF tem repetidamente apelado para um cessar-fogo imediato e prolongado para evitar mais mortes em Gaza e pediu às autoridades israelenses que retirem o cerco para permitir um fluxo incondicional e contínuo de trabalhadores humanitários e suprimentos humanitários para Gaza, incluindo itens essenciais como água e combustível. Os ataques indiscriminados e incessantes devem parar agora. O deslocamento forçado de pessoas deve parar agora. Os ataques a hospitais e à equipe médica devem parar agora. As restrições à ajuda humanitária devem parar agora.

Compartilhar