Gaza: sete meses de ataques implacáveis ao sistema de saúde e a civis

Centros médicos, profissionais e pacientes têm sido alvos sistemáticos de bombardeios, incursões e violência.

Hospital Nasser, em Gaza, foi atacado em fevereiro de 2024. Fotografia tirada dentro do hospital em 13 de março de 2024. © MSF

Nos últimos sete meses, o sistema de saúde na Faixa de Gaza tem sido sistematicamente devastado. De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), 24 hospitais em Gaza estão agora fora de serviço e 493 profissionais de saúde foram mortos. Cada centro médico ou sistema de entrega de ajuda  humanitária foi ou está sendo destruído para ser substituído por opções improvisadas e menos eficazes. Não há como prever qual será o custo humano indireto em mortes e lesões de longa duração em decorrência da negação de ajuda e tratamento para a população.

Profissionais e pacientes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) tiveram que deixar 12 diferentes estruturas de saúde e sofreram 26 incidentes de violência (uma média de 3,7 por mês) – incluindo ataques aéreos que danificaram hospitais, tanques disparando contra abrigos que foram acordados como zonas fora do conflito, ofensivas terrestres nas quais comboios e centros médicos foram alvejados. MSF ainda não recebeu explicações ou qualquer admissão de responsabilidade pelos assassinatos, mutilações ou desumanização de nossos profissionais e pacientes.

Embora os últimos sete meses tenham sido devastadores para as comunidades na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e em Israel, do ponto de vista médico-humanitário, a violência enfrentada pelos palestinos em Gaza e na Cisjordânia é muito anterior a 7 de outubro. É importante lembrar que já existia uma crise humanitária na Faixa de Gaza causada pelo bloqueio de 16 anos no enclave imposta por Israel.

Outubro de 2023

Em 6 de outubro de 2023, MSF realizava atividades médico-humanitárias nos Territórios Palestinos Ocupados, especificamente em Hebron, Jenin, Nablus, Masafer Yatta e na Faixa de Gaza. Nesse dia, os nossos colegas cuidavam de pacientes em Gaza feridos pelas chamadas “balas expansivas”*, disparadas por franco-atiradores israelenses contra pessoas que protestavam nos dias e semanas anteriores à guerra que atingiu a região em 7 de outubro. Também estávamos tratando 87 pacientes (de um total de quase 900 pacientes) com lesões de longa duração, sofridas na escalada da Grande Marcha do Retorno em 2018 e 2019.

A equipe médica de MSF também tratou pacientes feridos na guerra de 2021, desencadeada pela apreensão e colonização de propriedades em Sheikh Jarrah, Jerusalém Oriental, e resultando na escalada mais grave desde 2014, com milhares de palestinos deslocados, níveis massivos de destruição e centenas de mortos.

Os ataques de 7 de outubro e a punição coletiva que se seguiu representam uma mudança de paradigma na forma como MSF tem conseguido trabalhar nos Territórios Palestinos Ocupados. Sem operações em Israel, a primeira coisa que os nossos colegas testemunharam no dia 7 de outubro foram os ataques aéreos israelenses em Gaza, imediatamente após os ataques do Hamas, que estima-se terem matado cerca de 1.200 pessoas e tornado 253 pessoas reféns. No dia 8 de outubro, MSF ofereceu apoio ao Ministério da Saúde de Israel, o que acabou não sendo aceito.

Pacientes atendidos no Hospital de Campanha Indonésio, em 28 de janeiro de 2024. © MSF

Para os profissionais de MSF em Gaza que conduziam projetos focados em cirurgia ortopédica e reconstrutiva, fisioterapia, tratamento de queimaduras, cuidados de saúde psicológicos e pesquisa e tratamento para resistência antimicrobiana, não estava imediatamente claro o que aconteceria com nossos pacientes, como poderíamos garantir a continuidade dos cuidados ou o que seríamos capazes de fazer pelos feridos nesta nova escalada de violência.

No entanto, o que ficou claro foi que o crescente desrespeito e o desprezo à ação médico-humanitária e a destruição de instalações de saúde e abrigos para profissionais, juntamente com o assassinato de colegas e pacientes, tornaram quase impossível para MSF negociar a proteção que normalmente buscamos em situações de conflito.

O que se segue é uma linha do tempo de ataques a MSF ou às instalações médicas apoiadas por MSF e profissionais de saúde nos Territórios Palestinos Ocupados desde 7 de outubro. É importante notar que os ataques que tiveram a responsabilidade verificada foram atribuídos; no entanto, muitas vezes não conseguimos dizer com certeza de onde vieram os ataques.

A localização das instalações médicas apoiadas por MSF, dos abrigos e das movimentações das equipes de MSF, que foram atingidos ou atacados, foi comunicada às principais partes envolvidas no conflito em Gaza antes dos ataques. No entanto, estas instalações e movimentações não foram respeitadas nem protegidas, e muitos civis foram mortos ou feridos.

Cronologia

  • 7 de outubro – Imediatamente após os ataques do Hamas, as forças israelenses atacaram o Hospital Indonésio, em Beit Lahia, e uma ambulância em frente ao Hospital Nasser, em Khan Younis, matando duas pessoas da equipe médica – uma da área de enfermagem e outra que dirigia ambulâncias – e ferindo vários outros civis.

 

  • 10 de outubro – Um ataque aéreo israelense danificou a clínica de MSF na Cidade de Gaza; nenhum profissional ou paciente ficou ferido.

 

  • 11 de outubro – Um ataque aéreo atingiu uma área perto do hospital Al-Awda, em Jabalia, onde MSF trabalha desde 2018; alguns tetos desabaram com a explosão, mas a integridade estrutural do hospital foi mantida e ele continuou a funcionar.

 

  • 13 de outubro – As forças israelenses avisaram com duas horas de antecedência para evacuar o Hospital Al-Awda, apoiado por MSF. Nossos colegas médicos levaram os pacientes em macas para a rua na tentativa de transferi-los a outros hospitais com pouco sucesso. MSF condenou a ordem de evacuação e destacou a necessidade de proteger os profissionais médicos e os pacientes. Alguns profissionais e pacientes permaneceram no hospital.

 

  • 17 de outubro – Em Gaza, um ataque atingiu o estacionamento do hospital Al-Ahli Arab, onde um médico de MSF estava operando, matando centenas de pessoas. Nos dias que antecederam o incidente, o diretor do hospital recebeu avisos de Israel. MSF condenou este ataque. Até hoje, permanece incerto quem é o responsável por este ato. Uma investigação independente é a única forma de determinar a responsabilidade deste ataque.

 

  • 30 de outubro – Um projétil atingiu o Hospital da Amizade Turco-Palestina, apoiado por MSF, ao sul de Gaza, causando danos ao prédio. O hospital parou de funcionar quando ficou sem combustível no dia 1º de novembro.

 

  • 3 de novembro – Um ataque aéreo israelense fora do Hospital Al-Shifa, em Gaza, atingiu e destruiu um comboio de ambulâncias e matou muitas pessoas. MSF condenou severamente este ataque.

 

  • 15 de novembro – Tropas terrestres israelenses invadiram o Hospital Al-Shifa. Todos os profissionais restantes de MSF haviam deixado o hospital cerca de uma semana antes.

 

  • 18 de novembro – Um comboio de MSF que buscava evacuar profissionais e suas famílias foi alvejado, matando duas pessoas, incluindo um profissional de MSF. Todos os elementos apontam para a responsabilidade do exército israelense neste ataque. Dois dias depois, uma escavadeira israelense e veículos militares pesados destruíram os veículos de um comboio de MSF à vista de nossos colegas que estavam no abrigo de MSF em Gaza. Os veículos danificaram a clínica de MSF ao bater no muro da instalação, que desabou. Como resultado, parte da clínica pegou fogo.

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  • 24 de novembro – Como os únicos veículos disponíveis para a equipe e seus familiares alojados no abrigo e na clínica de MSF em Gaza foram destruídos, nossas equipes baseadas no sul da Faixa de Gaza enviaram mais veículos para lá com o objetivo de tentar outra evacuação. No entanto, eles também foram atingidos por disparos ao se aproximarem da clínica de MSF e a movimentação foi cancelada. Mais tarde, os veículos foram destruídos pelas forças israelenses na madrugada de 24 de novembro.

 

  • 1º de dezembro – Uma trégua temporária entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza entrou em vigor de 24 de novembro de 2023 a 30 de novembro de 2023. Horas após o fim da trégua, uma explosão danificou o Hospital Al-Awda.

 

  • 5 de dezembro – A equipe de MSF em Al-Awda relatou que o hospital estava enfrentando um cerco total. Nos dias seguintes, dois membros da equipe médica do hospital (não profissionais de MSF) teriam sido baleados e mortos por franco-atiradores do lado de fora.

 

  • 12 de dezembro – um cirurgião de MSF foi ferido dentro do Hospital Al-Awda por um tiro disparado de fora.

 

  • 14 de dezembro – no hospital Khalil Suleiman, em Jenin (Cisjordânia), os nossos colegas que apoiam o hospital testemunharam as forças israelenses dispararem e matarem um adolescente no complexo hospitalar, após paramédicos terem sido forçados a despir-se e ajoelhar-se na rua.

 

  • 17 de dezembro – As forças israelenses assumiram o controle do Hospital Al-Awda após um cerco de 12 dias. Homens com mais de 16 anos foram levados, despidos e interrogados – entre eles, seis profissionais de MSF. Após os interrogatórios, a maioria deles foi enviada de volta ao hospital e instruída a não se mover. No mesmo dia, munições traçantes israelenses atingiram a maternidade do Hospital Nasser. Um paciente foi morto e outros ficaram feridos.

 

  • 6 de janeiro – MSF teve que evacuar o Hospital Al-Aqsa em Deir al-Balah à medida em que se aproximavam os confrontos entre as forças israelenses e os grupos armados palestinos. As ordens de evacuação israelenses também colocaram a farmácia hospitalar de MSF dentro da zona de exclusão, tornando-a inacessível. Uma bala de um franco-atirador foi disparada contra a parede da unidade de terapia intensiva em 5 de janeiro.

 

  • 8 de janeiro – Um projétil de tanque israelense atingiu o abrigo “Lotus” de MSF em Khan Younis, matando a filha de 5 anos de idade de um integrante da equipe da organização e ferindo três pessoas. Mais de 125 profissionais de MSF e suas famílias foram transferidos para Rafah.

 

  • 22 de janeiro – O Hospital Nasser, em Khan Younis, foi cercado por confrontos, bombardeios e sujeito a ordens de evacuação. Os ataques aéreos mataram pessoas a cerca de 150 metros da entrada do hospital, segundo a equipe de MSF presente.

 

  • 15 de fevereiro – Uma bomba atingiu o departamento de ortopedia do Hospital Nasser; profissionais da equipe fugiram do complexo deixando para trás vários pacientes. Um membro da equipe de MSF foi detido em um posto de controle pelas forças israelenses e em seguida foi libertado.

 

Ataque de forças israelenses a Al Mawasi atingiu local que abrigava profissionais de MSF e suas famílias, em Khan Younis. Foto capturada em 21 de fevereiro de 2024. © MSF

 

  • 2 de março – Uma bomba atingiu um galpão próximo à entrada principal do Hospital Al-Emirati apoiado por MSF em Rafah, matando duas pessoas e ferindo várias outras.

 

  • 13 de março – Militares israelenses conduziram operações em Jenin (Cisjordânia). No Hospital Khalil Suleiman, apoiado por MSF, pessoas que estavam no pátio do hospital foram alvejadas. Seis pessoas que estavam perto da porta do pronto-socorro ficaram feridas, duas das quais morreram posteriormente.

 

  • 27 de março – Um ataque aéreo atingiu uma estufa perto da Clínica Al-Shaboura, uma instalação apoiada por MSF em Rafah. Várias pessoas morreram no ataque, apesar de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que exigia um cessar-fogo aprovado em 25 de março. Nenhum profissional ou paciente de MSF ficou ferido.

 

  • 31 de março – Um ataque aéreo israelense atingiu o pátio do complexo hospitalar de Al-Aqsa, apoiado por MSF, onde, nos arredores do pronto-socorro, muitas pessoas deslocadas internamente estavam abrigadas. Muitas pessoas foram mortas ou ficaram feridas. Após o ataque, parte da equipe de MSF teve que parar de prestar atendimento.

 

  • 1º de abril – Após uma operação de 14 dias das forças israelenses dentro e ao redor do Hospital Al-Shifa, o hospital ficou em ruínas e fora de serviço. Uma clínica de MSF nas proximidades da unidade de saúde também foi bastante danificada. Centenas de pessoas foram mortas, incluindo membros das equipes de saúde, e detenções em massa de equipes médicas e outras pessoas ocorreram dentro e ao redor do hospital.

 

  • 21 de abril – Um voluntário paramédico treinado por MSF foi baleado na perna, enquanto estava em serviço durante uma incursão de três dias nos acampamentos de refugiados de Tulkarem e Nur Shams, na Cisjordânia. Por causa das hostilidades, ele demorou sete horas para chegar ao hospital.

 

  • 6 de maio – Um ponto de estabilização apoiado por MSF foi invadido durante um ataque violento das forças israelenses nos acampamentos de Tulkarem e Nur Shams, na Cisjordânia. Paramédicos voluntários treinados por MSF foram ameaçados e não se sentem mais seguros para prestar cuidados aos pacientes.
Pessoas deslocadas caminham entre prédios destruídos pela violência implacável e pelos bombardeios em Gaza. 6 de maio de 2024. © MSF

No momento em que este artigo foi escrito, as forças israelenses haviam iniciado a sua ofensiva em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, e em partes do norte do enclave, e emitiram várias ordens de evacuação.

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A ofensiva e as ordens de evacuação reduzem ainda mais o acesso aos cuidados médicos em um sistema de saúde já dizimado, deixando as pessoas quase sem opções, até mesmo para a assistência médica básica. Entre os dias 6 e 12 de maio, MSF teve que suspender as atividades na Clínica Al-Shaboura, transferir as atividades no hospital Al-Emirati e foi forçada a encerrar nossas atividades no Hospital de Campanha Indonésio em Rafah, pois não podíamos garantir a segurança dos pacientes e de nossa equipe com a ofensiva contínua.

Tendo em vista esta extensa sequência de ações repreensíveis, MSF apela mais uma vez a todas as partes para que respeitem e protejam as instalações de saúde, os profissionais médicos e os pacientes em Gaza e na Cisjordânia.

Um cessar-fogo imediato e sustentado deve ser implementado agora para pôr fim ao sofrimento das pessoas e à destruição em Gaza. Exigimos um fluxo imediato e irrestrito de ajuda para toda a Faixa de Gaza. Exigimos responsabilização pelos nossos colegas e seus familiares que foram mortos e feridos, e pelos pacientes.

* As “balas expansivas” são munições capazes de destruir tecidos e dilacerar ossos, fazendo com que muitos pacientes precisem de cirurgias muito complexas.

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