Hepatite C: indo além da ajuda aos usuários de drogas injetáveis

No Camboja, ainda há muitas barreiras de acesso aos modernos tratamentos conta a doença

Hepatite C: indo além da ajuda aos usuários de drogas injetáveis

Vire nesta estreita rua lateral de uma avenida abarrotada pelo trânsito em Phnom Penh, capital do Camboja, e o volume de carros diminui de repente.

Sem as buzinas dos tuk-tuks, um mural brilhante dá boas-vindas aos visitantes do centro de acolhimento de uma instituição de caridade, chamada "Mith Samlanh" (grande amigo, em khmer, a língua nacional). A instituição foi fundada em 1994 para apoiar as crianças em situação de rua.

Hoje, os desafios da vida nas ruas são tão grandes que Mith Samlanh também alcança jovens adultos. Eles vêm a esse centro para comer, descansar e receber cuidados médicos, incluindo ajuda com a dependência de drogas.

Apesar dos dados sobre o uso de opiáceos no Camboja serem escassos, o país faz parte da rota de trânsito do triângulo dourado – uma área que engloba Mianmar, Laos e Tailândia – um dos maiores centros de produção de ópio do mundo. O impacto nos jovens cambojanos é visível todos os dias em centros como esse.

A equipe médica de Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha nesse centro desde agosto de 2017 para oferecer testes e tratamento gratuitos para hepatite C, uma doença muitas vezes séria e vitalícia. Ela é transmitida pelo sangue e pelo uso compartilhado de agulhas.

Chenda foi um dos primeiros pacientes de Mith Samlanh a realizar o teste. Seu resultado deu positivo. Ele diz que saiu da área rural em direção a Phnom Penh após uma briga com sua família. Isso foi há 20 anos. "Eu durmo na rua", ele explica, "na frente de uma casa."

O centro está aberto todos os dias úteis da semana e Chenda o visita diariamente. "Aqui eu posso descansar, pegar remédio, comer um lanche". Os pacientes veem o centro como um lugar seguro, com serviços em que confiam.

 

"Quando soube que o tratamento estava disponível, eu o fiz rapidamente porque sabia que precisava para sobreviver", afirma Chenda. "Os medicamentos são caros – e aqui eu poderia obtê-los gratuitamente".

Um tratamento que a maioria dos cambojanos não pode pagar

“Caro” é eufemismo. No Camboja, um tratamento de três meses custa mais de mil dólares (um pouco mais de 3 mil reais). Um enorme fardo para a maioria dos cambojanos; ainda mais para aqueles que lutam para sobreviver.

Um novo tipo de tratamento utilizado, chamado agentes antivirais diretos (AADs), ajuda a explicar o custo. O AAD revolucionou o tratamento contra a hepatite C. Antes, os pacientes suportavam doses maiores e menos eficazes com efeitos colaterais dolorosos. Agora, os pacientes que utilizam AADs seguem um regime simples de medicamentos por 12 semanas. No projeto de MSF no Camboja, a taxa de cura é maior que 95%.

MSF oferece gratuitamente o teste e o tratamento. Quando o serviço abriu em 2016, pessoas de todo o país se reuniram no hospital de Phnom Penh onde a equipe atua. Muitas relataram ter sido diagnosticadas anos – senão décadas – atrás.

No entanto, elas não tinham como pagar o tratamento e muito menos os novos AADs. Mais de 10 mil pessoas vieram realizar os testes e, delas, um terço era positivo. O projeto de MSF será expandido em breve para outros locais fora de Phnom Penh.

A idade de muitos desses pacientes sugere que eles foram infectados na década de 1980, quando o sistema de saúde do Camboja passava por dificuldades após a guerra civil. Uma causa possível é que, na época, os profissionais médicos, enfrentando a falta de agulhas, foram forçados a reutilizá-las.

Um trecho de obstáculos na estrada para o tratamento

Ao contrário desses pacientes, hoje, os jovens que injetam opiáceos estão sendo infectados e transmitindo a doença. E é um desafio chegar até eles.

"Eu trabalho em frente a um supermercado", outro paciente, Chesda, relata, "como profissional do sexo. Quando não estou ocupada, venho aqui para o centro."

Ela acrescenta: "Mas quando estou ocupada, não posso. E eu trabalho todos os dias."

Ela também fez o teste. O resultado não ficou claro. "Eles precisavam tirar mais sangue e era difícil. A enfermeira não conseguiu."

Esse é um problema comum. Devido ao uso repetido de drogas intravenosas, as veias dos pacientes podem ter forte cicatrização. Isso dificulta a localização, a punção e a retirada de sangue.

Encorajar os pacientes a retornarem para testes de acompanhamento também é difícil devido a estilos de vida transientes, por serem sem-teto ou para evitar medidas repressivas. Um paciente foi preso duas vezes durante o tratamento – e nas duas seus medicamentos contra hepatite C foram apreendidos.

Esses obstáculos mostram que das 115 pessoas que realizaram o teste – mais da metade com resultado positivo – apenas 10 estão atualmente em tratamento.   

O desafio de aderir ao tratamento

Outra mulher, também positiva para a doença, relata quando acontece os mesmos problemas: "toda vez que o médico me pede para vir. Todas as semanas, todas as semanas. Então eu tento, para que eu possa melhorar. Mas eu trabalho. Às cinco horas da manhã eu começo e às cinco da tarde termino."

E para aqueles que podem começar o tratamento, sua situação ou emprego – incluindo aqueles cujos parentes na área rural precisam de apoio – dificultam a visita ao centro todos os dias.

A equipe de Mith Samlanh e MSF tentam adaptar o tratamento às circunstâncias das pessoas. Por exemplo, alguns pacientes estão seguindo um tratamento com metadona para se libertar da dependência de opiáceos. Oferecendo tratamento de hepatite para aqueles que já estão envolvidos nos cuidados, fica mais fácil de localizar os pacientes e de manter contato, o que significa que eles têm uma melhor chance de completar o tratamento.

Chenda, o primeiro paciente, explica que o desafio é manter o foco quando fora do instituto.

Como é durante os fins de semana, quando o centro está fechado?

"Eu tenho que fazer o tratamento, não importa o local", ele responde. "Sou responsável pelo sábado e domingo".  

* Nomes foram alterados
 

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