Líbano: crianças e adultos enfrentam impactos da guerra na saúde mental

Equipes de MSF estão fornecendo cuidados psicológicos em clínicas móveis e por meio de uma linha telefônica para atendimento à distância

Ezdihar al Diqa e sua filha Nouraya, de 14 anos de idade, no quarto que compartilham com outras 14 pessoas desde 29 de setembro, no abrigo Azarieh, no centro de Beirute, Líbano. © Antoni Lallican/Hans Lucas

“Minha filha tem apenas 14 anos de idade, mas com todas as dificuldades que enfrentamos, ela está reagindo aos bombardeios como uma pessoa adulta”, constata Ezdihar, deslocada pela guerra no Líbano. “Ela teve que crescer rápido.”

Na noite de 28 de setembro, Ezdihar e sua família estavam jantando em casa, nos subúrbios do sul de Beirute, quando receberam um alerta sobre um ataque iminente das forças israelenses. Enquanto o marido cuidava da mãe, Ezdihar levou os filhos e buscou refúgio no centro da cidade, junto com seus vizinhos.

Após passar uma noite na rua, eles se mudaram para o abrigo Azarieh, um edifício comercial que agora abriga cerca de 3.500 pessoas deslocadas. Hoje, eles estão entre as 1,2 milhão de pessoas deslocadas pela guerra entre o Hezbollah e Israel, de acordo com dados das autoridades libanesas.

As equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão atendendo às necessidades médicas e de saúde mental de pessoas que vivem em abrigos coletivos, incluindo crianças e adolescentes como a filha de Ezdihar. Em um cenário de medo e incerteza, crianças e jovens são os mais atingidos.


Profissional de MSF organiza atividade de pintura facial para crianças no abrigo Azarieh, no centro de Beirute. Líbano, 11 de outubro de 2024. © Antoni Lallican/Hans Lucas

Impactos da guerra e do deslocamento na saúde mental

Em menos de um mês desde a escalada da guerra, mais de 2.300 pessoas foram mortas no Líbano – a maioria dos óbitos ocorreu nas últimas três semanas. Mais de 11.100 pessoas ficaram feridas, de acordo com as autoridades de saúde.

A violência forçou muitas crianças e adolescentes a sair de casa, interromper os estudos, se separar dos amigos e perder o acesso a recursos básicos, como alimentos e abrigo adequado.

Zeinab Ozeir, com três de seus quatro filhos: Helena, de 8 anos, Abbas, de 1 ano e meio, e Amir, de 2 meses de vida. A família está vivendo no abrigo Azarieh, no centro de Beirute, após se deslocar dos subúrbios no sul da cidade. © Antoni Lallican/Hans Lucas

“Muitos pais e mães estão observando problemas comportamentais em seus filhos – raiva, agressão e outros comportamentos – o que aumenta a preocupação com o bem-estar”, Amani Al Mashaqba, coordenadora de atividades de saúde mental de MSF na província de Bekaa.

No entanto, as crianças não são as únicas que precisam de apoio de saúde mental. Muitos dos pacientes de MSF relatam sentir-se sobrecarregados e traumatizados pela constante ameaça de violência, expressando profundas preocupações sobre o futuro em um ambiente instável.

O luto pela perda de familiares e a dor da separação ocasionada pelo deslocamento agravam ainda mais a angústia que sentem. Outros se preocupam com o manejo de condições crônicas de saúde ou com a possibilidade de faltar a um ano de escola. Essas situações geram um impacto significativo na saúde mental das pessoas.

Dayana Tabbara, conselheira de saúde mental de MSF, fornece primeiros socorros psicológicos a uma paciente e sua filha em Beirute. Líbano, 25 de setembro de 2024. © Salam Daoud/MSF

“As pessoas estão expressando uma forte necessidade de serviços de saúde mental, principalmente para traumas”, acrescentou Al Mashaqba. “Isso está afetando a vida diária, desde distúrbios do sono até perda de apetite.”

Estamos fornecendo cuidados de saúde primária e mental para as pessoas deslocadas, incluindo primeiros socorros psicológicos e psicoeducação, por meio de nossas unidades médicas móveis no país. Nem sempre é fácil fazer com que as pessoas reconheçam suas dificuldades e expressem vulnerabilidade. Nossas equipes observam que muitas pessoas sentem que devem permanecer resilientes diante das dificuldades. Convencê-las de que não há problema em sentir as emoções tem sido, por vezes, um desafio, pincipalmente para os meninos, que com frequência são ensinados a reprimir seus sentimentos.

Uma linha telefônica para buscar ajuda psicológica

Para ampliar o apoio no Líbano, MSF também iniciou o atendimento com uma linha telefônica por meio da qual as pessoas podem receber assistência remota de psicólogos clínicos que ajudam a gerenciar sintomas relacionados ao trauma, como a ansiedade e o luto.

A linha de apoio de MSF nos permite alcançar pessoas que não conseguem acessar nossos serviços pessoalmente, principalmente no sul do Líbano, onde bombardeios intensos e restrições de mobilidade dificultam as movimentações. Essa acessibilidade é crucial durante um período tão volátil, pois muitas pessoas estão se deslocando e enfrentam barreiras para acessar os cuidados, incluindo altos custos de transporte e o estigma cultural em torno da saúde mental.

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Muitas das pessoas que ligam para a linha de apoio são mães e pais que enfrentam dificuldades para tentar ajudar os filhos a lidar com a guerra. Eles percebem mudanças no comportamento das crianças e buscam ajuda profissional para conseguir explicar os sons assustadores das bombas e dos tiros para os filhos.

Às vezes, cuidadores recorrem a explicações enganosas em um esforço para tranquilizar as crianças. Um tiroteio, por exemplo, pode ser descrito como uma manifestação de felicidade, como tiros de comemoração durante casamentos. Nossos psicólogos da linha de apoio fornecem estratégias para mães e pais se comunicarem de forma honesta e criarem espaços seguros para que seus filhos expressem seus sentimentos.

 

“Embora devamos ser realistas sobre a situação, também precisamos normalizar seus sentimentos”, explicou Al Mashaqba. “É importante que os pais ouçam seus filhos e entendam como os sons os afetam. Eles podem incentivar as crianças a compartilhar seus sentimentos por meio de desenhos ou conversas.”

Profissionais de MSF organizam atividades para as crianças no abrigo Azarieh, Beirute. Líbano, 11 de outubro de 2024. © Antoni Lallican/Hans Lucas

Com uma demanda crescente, observamos um aumento expressivo de ligações para a linha de apoio, de cinco chamadas por dia no início da disponibilização do serviço para até 80 em uma única tarde. Ao todo, a linha de apoio recebeu quase 300 ligações para apoio em saúde mental, a maioria nas últimas duas semanas.

Além disso, até 21 de outubro de 2024, nossas equipes móveis facilitaram sessões de primeiros socorros psicológicos em grupo para quase 5 mil pessoas, e mais de 450 pessoas passaram por sessões individuais de saúde mental.

Profissionais de MSF também fornecem primeiros socorros psicológicos, que incluem escuta ativa e técnicas para alívio do estresse, permitindo que os pacientes expressem seus sentimentos e preocupações. Além disso, estamos distribuindo itens de primeira necessidade, como colchões e kits de higiene para pessoas deslocadas.

Distribuição de itens de primeira necessidade em Akkar. Líbano, 12 de outubro de 2024. © MSF

Um país em crise

Esta guerra atual surge em um contexto de crise econômica prolongada que deixou mais de 80% da população libanesa vivendo abaixo da linha da pobreza e com necessidade urgente de assistência. O setor de saúde tem enfrentado graves desafios. Os serviços médicos públicos estão se deteriorando e os cuidados de saúde privados estão se tornando cada vez mais inacessíveis.

Algumas pessoas me disseram que preferiam morrer do que passar pelo trauma de ser um refugiado novamente.”

– Amani Al Mashaqba, coordenadora de atividades de saúde mental de MSF na província de Bekaa

“Um dos psicólogos compartilhou que, quando uma mulher soube que nossos serviços são gratuitos, ela começou a chorar”, compartilhou Al Mashaqba. “Muitas vezes, as pessoas não estão acostumadas a ter acesso a esses tipos de recursos sem o gasto financeiro.”

Além disso, o Líbano abriga um número significativo de refugiados, incluindo 1,5 milhão de sírios e mais de 200 mil palestinos, muitos dos quais enfrentaram repetidos deslocamentos. Para essas pessoas, o medo da deportação e a luta para encontrar segurança podem ter um peso devastador. “Algumas pessoas me disseram que preferiam morrer do que passar pelo trauma de ser um refugiado novamente”, contou Al Mashaqba.

MSF está realizando avaliações contínuas das necessidades das pessoas deslocadas internamente e, à medida que a situação evolui, nossas equipes estão trabalhando em estreita colaboração com parceiros e redes hospitalares para fornecer suporte abrangente sempre que possível.

 

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