Líbia: migrantes enfrentam violência extrema e exclusão da saúde

Além de fornecer atendimento de saúde primária, MSF concentra esforços para abrir caminhos seguros e legais para evacuar pessoas do país

Pacientes aguardam atendimento em um dos centros de saúde de MSF em Zuwara, na Líbia. ©Shouqi Benarabi/MSF

Em 2024, cerca de 787 mil migrantes e refugiados viviam na Líbia, segundo a Agência da ONU para as Migrações (OIM). Enquanto alguns vão em busca de trabalho, outros passam pelo país na tentativa de chegar à Europa atravessando o Mar Mediterrâneo. Na Líbia, essas pessoas vivem em condições precárias e são submetidas a uma série de violências e abusos, tanto dentro quanto fora dos centros de detenção do país. Sequestrados, sujeitos a práticas de extorsão e tráfico, agredidos ou submetidos à violência sexual, migrantes e refugiados têm o acesso a serviços de saúde severamente prejudicado em um momento em que precisam urgentemente de cuidados.

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“Eu desmaiei sob golpes e, quando acordei, ainda estavam me batendo”, diz Ahmed*, um jovem sudanês detido e colocado na prisão enquanto tentava sua jornada para Tunísia. “Fiquei desfigurado, não tinha dentes. Meu amigo Saud me disse que eles haviam batido na minha cabeça com um tijolo.”

Atendido por equipes da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Zuwara, cidade litorânea a cerca de 100 quilômetros da capital, Trípoli, Ahmed* passou um mês internado.

Recebemos pessoas que sofrem de tuberculose que procuram tratamento muito tarde, o que leva a uma alta mortalidade.”
– Issam Abdullah, médico e coordenador-geral de MSF na Líbia

“As pessoas que vivem sem documentação na Líbia não têm proteção, seja perante a lei ou as frágeis instituições do país. Isso as impede de ter acesso a cuidados de saúde”, explica Steve Purbrick, coordenador do projeto de MSF na Líbia. “Elas estão expostas diariamente à violência. Vemos pessoas que foram traficadas, outras que foram torturadas, sobreviventes de violência sexual.”

Sem proteção e sem acesso a cuidados de saúde

A Líbia é o país de partida para muitas pessoas que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo para chegar à Itália. Como Ahmed*, migrantes e refugiados sem documentação que chegam no país estão expostos à violência ao longo de sua jornada.

Muitas vezes, as pessoas vivem em locais superlotados, perigosos e insalubres – quartos compartilhados, galpões abandonados ou canteiros de obras, onde correm o risco de contrair doenças.

Carolina, coordenadora de atividades de proteção de MSF, conversa com um paciente em um dos centros onde MSF trabalha na cidade de Zuwara, na Líbia. © Shouqi Benarabi/MSF

“O estado de saúde dessas pessoas reflete tanto suas condições de vida quanto a extrema violência que enfrentam”, diz Issam Abdullah, médico e coordenador-geral de MSF na Líbia. “Sem proteção e acesso a cuidados, os ferimentos e lesões pioram rapidamente.”

Equipes de MSF prestam apoio médico nas cidades de Misrata, Trípoli e Zuwara para atenção primária à saúde, saúde sexual e reprodutiva, saúde mental, diagnóstico e tratamento da tuberculose e atendimento a sobreviventes de violência sexual. Os casos médicos mais graves que necessitam de internação são encaminhados para a capital.

A operação da mandíbula de Ahmed* foi financiada por MSF e realizada em um hospital de Trípoli. Não havia outra solução.

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Em 2024, as equipes de MSF realizaram mais de 15 mil consultas. A maioria dos pacientes que receberam cuidados de saúde mental sofria de transtornos de estresse pós-traumático ligados à violência que sofreram.

“Seu destino pode mudar a qualquer momento na Líbia. Basta uma coisinha, e sua vida vira de cabeça para baixo. Você pode morrer, acabar na prisão”, diz Nelson, migrante camaronês que recebeu cuidados de saúde mental de MSF. Na tentativa de chegar à Europa, o barco em que ele estava com a esposa e dois filhos naufragou. Apenas Nelson sobreviveu.

“Para ver um médico, por exemplo, ou para comprar pão, você pode pegar o caminho errado e se deparar com a polícia. Se é o seu dia de sorte, eles não te veem; se não é o seu dia de sorte, eles te prendem”, conta Nelson.

Estamos concentrando nossos esforços na abertura de caminhos seguros e legais para evacuar pessoas da Líbia.”
– Steve Purbrick, coordenador do projeto de MSF na Líbia

Diante do risco de sequestro e prisão pela polícia ou pela milícia, as pessoas são forçadas a se esconder em locais isolados, onde ficam ainda mais vulneráveis. Elas procuram atendimento médico apenas como último recurso, quando o estado de saúde já se agravou severamente.

Em 2024, equipes de MSF diagnosticaram e trataram mais de 250 pessoas com tuberculose. Dezesseis morreram porque não foram tratadas a tempo.

Médico de MSF acompanha um paciente com suspeita de tuberculose até a sala de consulta em Zuwara, na Líbia. ©Shouqi Benarabi/MSF

“Recebemos pessoas que sofrem de tuberculose que procuram tratamento muito tarde, o que leva a uma alta mortalidade e maior disseminação da doença”, constata Abdullah. “Nossas equipes também veem o impacto negativo do tratamento interrompido.”

Salma*, de 37 anos, tem diabetes. Ela fugiu da guerra no Sudão em abril de 2023. “Tratar diabetes requer refeições regulares e medicação, e na Líbia isso não é possível”, diz ela, que antes trabalhava como professora universitária.

“Quando tive que sair do Sudão, minha saúde se deteriorou rapidamente com o passar dos dias – fiquei incapaz de fazer qualquer coisa, nem cozinhar, nem mesmo me vestir… Fiquei totalmente dependente das minhas filhas”, lembra Salma.

Mais evacuações da Líbia

“As pessoas em movimento são parte integrante de um modelo econômico montado por milícias, com a cumplicidade da União Europeia e de seus Estados-membros para extorquir dinheiro delas. Elas têm que pagar pela travessia, por sua libertação e para continuar sua jornada, mas sempre com o risco de serem vítimas de redes criminosas novamente”, diz Purbrick, coordenador do projeto de MSF.

“É por isso que, além de fornecer acesso a cuidados de saúde no país, também estamos concentrando nossos esforços na abertura de caminhos seguros e legais para evacuar pessoas da Líbia, especialmente pelo corredor humanitário que existe entre a Líbia e a Itália. MSF participa desse corredor identificando pessoas em situação de vulnerabilidade a serem evacuadas e se responsabilizando por algumas delas na Itália. Essas opções, porém, precisam ser drasticamente ampliadas”, completa Purbrick.

Desde 2021, o corredor já permitiu a evacuação de mais de 700 pessoas, cerca de 60 das quais eram pacientes de MSF na Líbia. Quatorze pessoas foram atendidas por MSF em Palermo, na Sicília.

Em abril de 2023, as Nações Unidas publicaram um relatório concluindo que havia motivos para acreditar que foi cometida uma ampla gama de crimes contra a humanidade direcionados a migrantes na Líbia.

*Nomes alterados para proteger a identidade

 

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