Médico brasileiro fala sobre projeto no Uzbequistão

O psiquiatra gaúcho Alberto Hexsel fala sobre o seu primeiro trabalho com Médicos Sem Fronteiras, tratando de pacientes com tuberculose multirresistente

Hoje é dia de Natal e escrevo do Uzbequistão, prestes a finalizar minha primeira missão. Meu nome é Alberto Hexsel, sou psiquiata natural de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Jamais imaginei que iria viver um período longo de minha vida nesse país, sequer passar o Natal num país muçulmano.

Como foi que acabei na Ásia Central? Como muitos médicos, tenho uma relação fantasiosa muito antiga com Médicos Sem Fronteiras (MSF), de mais de 20 anos. Recentemente, com meus alunos do terceiro ano da Faculdade de Medicina, passei a investigar opções de trabalho para os recém-formados, além do trabalho para o governo e residência médica, tais como Forças Armadas e ONGs. Os alunos, repetidas vezes, fizeram apresentações sobre MSF e foi reavivando em mim a idéia de participar do movimento.

Meu receio então era a idade: com 51 anos não vou ser aceito. Mas tentei. Fiz vários contatos com escritórios de MSF e finalmente marquei entrevista em Nova Yorque (MSF-EUA). Três meses depois estava no norte do Uzbequistão, na região do Karakalpakstan, onde a incidência de tuberculose resistente a múltiplas drogas (MDR-TB, na sigla em inglês) é maior do que em todo Mar Aral. Aqui MSF-Holanda e o Ministério da Saúde mantêm um projeto piloto para tratamento desde 2003. Para minha surpresa, a média das idades do time de expatriados era 52 anos.

O projeto é completamente diferente do que imaginara das operações do MSF: sem conflito armado, enchentes, epidemias, dificuldades logísticas, insegurança ou extrema pobreza. Ao contrário, um projeto altamente especializado, com recursos tecnológicos sofisticados, visita frequente de ‘experts’ na área de epidemiologia, laboratório, clínica, cirurgia. Os pacientes também fora do esperado: 98% são alfabetizados, mais da metade com pelo menos três anos de universidade.

MSF tem autorização do “Green Light Committee” da Organização Mundial da Saúde (OMS) para executar projetos em vários países para o tratamento da MDR-TB. O nosso é um dos mais antigos. Estuda-se a viabilidade de tratamento de MDR-TB nesse tipo de ambiente. Desde o colapso da antiga União Soviética (URSS), vem aumentado o número de casos novos de tuberculose, fenômeno alimentado pela fragmentação da economia e consequente desorganização do sistema de saúde, somado ao progressivo dessecamento do Mar de Aral. Essa combinação criou uma das maiores catástrofes ambientais no planeta, oportuna para doenças infecciosas.

Quando a URSS desviou o Rio Amu Darya para irrigar as plantações de algodão do Uzbequistão, o Mar de Aral começou a secar. Uma vez o quarto maior volume d’água dentro de um continente, hoje é apenas uma planície salgada, desértica e poeirenta. Visitar o leito seco do mar, cuja margem está há 150 Km de distância de onde estivera, é uma experiência chocante.

O tratamento da MDR-TB é feito com medicações chamadas de “segunda linha”. São bastante tóxicas e frequentemente induzem episódios psicóticos e depressões graves. O tratamento dura cerca de dois anos, exigindo dedicação dos pacientes, o que é difícil devido ao estigma e empobrecimento familiar. O meu trabalho envolve o cuidado médico psiquiátrico desses pacientes, coordenar o suporte psicossocial aos doentes e suas famílias, e principalmente treinar psiquiatras e enfermeiras locais para dar sustentação nacional ao programa no futuro. Profissional e pessoalmente estou aprendendo, às vezes vagarosamente, imerso em um novo contexto. Utilizamos tradutores para qualquer comunicação com os pacientes, para mim uma nova dimensão, a psiquiatria transcultural.

Médicos Sem Fronteiras trabalha no Uzbequistão desde 1997. Realizado em cooperação com o Ministério da Saúde do país, o projeto conta com um hospital de 60 leitos para o tratamento de pacientes que estão na primeira fase da tuberculose multirresistente, que exige internação e tratamento intensivo. MSF e o ministério também trabalham juntos em uma série de clínicas médicas especializadas, onde pacientes na segunda fase da doença recebem assistência.

MSF também reconstruiu a policlínica usada para consultas e seu laboratório especializado. A equipe também treinou os profissionais locais.

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