Milhares de pessoas deslocadas lutam para sobreviver em Goma, na República Democrática do Congo

Claire Magone, diretora-executiva de MSF- França, esteve na região e fala sobre a situação das pessoas expostas à violência e à falta de serviços essenciais em acampamentos lotados.

Acampamento para pessoas deslocadas de Lushagala, estabelecido perto de local para descarte de resíduos. © Alexandre Marcou/MSF

Mais de 1 milhão de pessoas fugiram dos conflitos ligados ao ressurgimento do grupo armado M23 na província de Kivu do Norte, na República Democrática do Congo (RDC). Milhares delas vivem atualmente em situação de vulnerabilidade extrema em acampamentos superlotados em Goma, a capital da província, e em seus arredores. Claire Magone, diretora-executiva de Médicos Sem Fronteiras (MSF) na França, esteve na região no final de julho. Nesta entrevista, ela discute a dimensão das necessidades, a mobilização atual das organizações de assistência e como as mulheres estão particularmente vulneráveis à violência. 

Qual é a situação nos acampamentos ao redor de Goma? 

As milhares de pessoas que chegaram em Goma desde março de 2022 estão em um “beco sem saída”. Elas chegaram lá após uma série de deslocamentos forçados e agora se encontram em uma situação que não apresenta nenhuma perspectiva. 

A expressão mais frequentemente usada para descrever a situação nos acampamentos é que eles são impróprios para viver. São populações que foram “entregues à própria sorte”, com pouca assistência. Estão expostas em todos os sentidos da palavra: a doenças, à desnutrição e a condições climáticas, pois vivem em abrigos impróprios. Também estão propensas a toda forma de violência, que é agravada pela extrema superlotação dos acampamentos. 

As famílias precisam se aglomerar e sobrevivem como é possível em acampamentos insalubres e muito cheios. Os proprietários de áreas nos arredores de Goma se recusam a fornecer acesso à terra. Enquanto isso, o compromisso do governo de disponibilizar 115 hectares para as pessoas deslocadas ainda não foi cumprido. 

A situação é um “beco sem saída” em termos de falta de perspectivas, mas também físicos e geográficos: são pessoas que já haviam perdido tudo no caminho, que não encontram nada quando chegam e que vivem em completa situação de vulnerabilidade.

Acampamento de Bulengo, nos arredores de Goma, onde MSF oferece serviços de saúde. © Michel Lunanga/MSF

Em maio, MSF alertou para um número particularmente alto de casos de violência sexual, com até 50 mulheres chegando às clínicas de MSF para atendimento todos os dias na época. Qual é a situação atualmente?

A exploração sexual e a violência são agravadas diretamente pelas condições de vida e pela falta de assistência. A maioria das mulheres deslocadas nos acampamentos de Goma vive sob constante ameaça de invasões em abrigos improvisados feitos de folhagem e pedaços de lonas de plástico. 

Muitas delas sofrem violência quando buscam lenha fora dos acampamentos. Outras estão presas em redes de exploração ou sujeitas a diferentes formas de chantagem sexual dentro dos acampamentos.

Por exemplo, os pontos de água – incluindo os que foram instalados por MSF – são usados tanto por famílias nos acampamentos quanto por homens armados, que podem impedir, sob chantagem, uma mulher que vai buscar água de acessar o recurso. 

Estar ciente do desequilíbrio na relação entre mulheres que não têm nada e homens que detêm algum poder significa que devemos estar constantemente alertas para abusos de poder. Precisamos incentivar as mulheres a denunciar esses abusos, fortalecer nossos mecanismos de prevenção e tratamento dos casos que são relatados a nós.

As mulheres sobreviventes de violência sexual podem acessar cuidados que vão desde a pílula do dia seguinte até a interrupção da gravidez, além da prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Oferecemos apoio psicossocial, serviços que precisam estar disponíveis para todas as mulheres que expressam a necessidade deles, tenham sofrido ou não a violência sexual. 

Abrigo improvisado no acampamento de Rusayo, onde mais de 100 mil pessoas deslocadas vivem em condições precárias. © Michael Neuman/MSF

Nos últimos meses, MSF pediu várias vezes a mobilização de organizações humanitárias. Em junho, as Nações Unidas classificaram a situação nas províncias de Ituri, Kivu do Norte e Kivu do Sul como uma emergência de nível 3, permitindo uma mobilização rápida e um aumento da resposta humanitária. Qual é o nível atual de mobilização humanitária?

Entre março e junho, houve um crescimento na conscientização por parte das Nações Unidas e de outros atores sobre a necessidade de aumentar a assistência. Os mecanismos de coordenação e a organização do próprio sistema de ajuda humanitária precisam melhorar, particularmente por meio da realocação de profissionais experientes de Kinshasa para Goma, o mais próximo possível das necessidades. 

Um plano de financiamento dedicado de 1,5 bilhão de euros (que já sabemos que será apenas parcialmente coberto), ou seja, 500 milhões de euros a mais do que o orçamento inicialmente destinado à RDC, deve permitir que as ações prioritárias sejam direcionadas, particularmente em termos de segurança alimentar, acesso à água e cuidados a sobreviventes de violência sexual. 

No entanto, essa mobilização inicial ainda é lenta para se transformar em melhorias tangíveis para as pessoas deslocadas em questão: qualidade dos abrigos, número de metros quadrados de espaço habitável por pessoa, disponibilidade de infraestrutura de água e saneamento, quantidade de ajuda alimentar etc. 

Em todas essas áreas, a assistência prestada está bem abaixo dos padrões mínimos formalizados no âmbito da iniciativa SPHERE – esses padrões foram definidos por organizações humanitárias, no final da década de 90, justamente porque a ajuda prestada às populações afetadas pela crise dos Grandes Lagos, na África Central, era considerada vergonhosa.

Cerca de 400 mil litros de água potável são distribuídos por MSF diariamente no acampamento de Rusayo. Apesar disso, a quantidade de água não é suficiente para responder às necessidades da população. © Alexandre Marcou/MSF

Qual o papel das autoridades congolesas nessa mobilização?  

É necessário reconhecer que as preocupações expressas pelas autoridades sobre o destino das populações deslocadas e a necessidade de ajudá-las agora são superficiais. Na prática, as autoridades não fazem nada para facilitar a emissão de vistos para profissionais internacionais, procedimentos relacionados a suprimentos ou coordenação dos atores envolvidos. Pelo contrário, os obstáculos burocráticos e administrativos estão aumentando. 

Nesse contexto, quais são as restrições e preocupações de MSF? 

A situação das populações deslocadas e nossa capacidade de ajudá-las é atualmente nossa principal preocupação. Em Goma, a população deslocada está encurralada e, em áreas sob controle do M23, onde MSF é uma das poucas organizações que ainda atuam, as pessoas vivem em meio aos conflitos.

O clima geral de insegurança não encoraja o otimismo. Pode-se dizer que há uma verdadeira corrida armamentista em Kivu do Norte, com grupos armados e jovens estimulados por discursos patrióticos e apelos à mobilização, enquanto há pouca esperança da diminuição dos conflitos com o M23. 

Muitos analistas estão preocupados com a possibilidade de novos movimentos massivos de deslocamento, particularmente se o avanço do M23 ou pontos de tensão com os grupos armados inflamarem conflitos em Goma – uma cidade que acolheu mais de 600 mil pessoas deslocadas em nove meses e que seria completamente incapaz de lidar com um novo fluxo de várias centenas de milhares de pessoas.

 

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