Moçambique: fornecendo cuidados para pessoas que vivem com HIV em meio ao conflito

A violência e o estigma social dificultam o aumento da adesão ao tratamento no país que apresenta uma das maiores taxas de infecção por HIV do mundo

Centro de saúde de Palma, na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique ©Costantino Monteiro/MSF

“Sempre fui apaixonada por Medicina, mas essa paixão ganhou mais espaço quando minha mãe foi diagnosticada com diabetes e também contraiu o HIV”, lembra Filomena Januário, especialista em HIV/Aids que trabalha para Médicos Sem Fronteiras (MSF) no norte de Moçambique. Com medo do julgamento de outras pessoas, sua mãe não procurou tratamento para a infecção por HIV e acabou morrendo de complicações associadas à condição de saúde.

“Ela lutou para aceitar o diagnóstico e, infelizmente, acabou perdendo a vida”, lamenta Filomena. “Essa perda se tornou meu ponto de virada. Prometi a mim mesma: vou mudar essa realidade. Vou dedicar minha vida à saúde para que eu possa cuidar da minha própria família. Talvez se eu fosse médica [na época], a vida da minha mãe poderia ter sido salva.”

O compromisso de Filomena com a luta contra o HIV/Aids é profundamente pessoal. Através do seu trabalho no hospital rural de Mocímboa da Praia, na província de Cabo Delgado, ela busca garantir que mais ninguém enfrente as mesmas barreiras que sua mãe enfrentou para receber cuidados de saúde essenciais para pessoas vivendo com HIV.

Moçambique enfrenta uma das maiores taxas de prevalência de infecções por HIV no mundo. Entre as pessoas de 15 e 49 anos, 11,5% vivem com o vírus. Mais de 2 milhões de pessoas estão atualmente recebendo terapia antirretroviral (TARV), que tem sido fundamental para reduzir a transmissão e as mortes relacionadas ao HIV. No entanto, muitos desafios persistem, principalmente em províncias como Cabo Delgado, onde o conflito armado interrompeu o acesso das pessoas aos cuidados médicos desde 2017.

Conflito e deslocamento

A violência em curso na província de Cabo Delgado forçou milhares de pessoas a fugir das suas casas. Muitas vivem em condições precárias, com abrigo inadequado, muito pouco para comer e saneamento precário – fatores que exacerbam a vulnerabilidade a infecções, pincipalmente para pessoas cujos sistemas imunológicos já estão enfraquecidos pelo HIV.

Mesmo quando os cuidados para a infecção por HIV estão disponíveis, o estigma e a discriminação impedem muitas pessoas de procurar tratamento. Durante o tratamento, a falta de cuidados integrados pode dificultar a adesão dos pacientes à medicação da terapia antirretroviral, que precisa ser tomada diariamente.

“Um dia, um paciente é tratado aqui, e no dia seguinte em outro hospital, então o atendimento não é integrado”, explica Filomena. “Muitos não têm um cartão de saúde, não sabem que medicação estavam tomando ou há quanto tempo estavam tomando.”

Desde 2019, MSF trabalha para reforçar os cuidados médicos e a ajuda humanitária para a população na província de Cabo Delgado. Em parceria com o Ministério da Saúde local, mobilizamos equipes médicas, doamos medicamentos e oferecemos apoio de saúde mental.

Quer ajudar MSF a continuar levando cuidados de saúde a lugares como Moçambique? DOE!

Um dos focos do trabalho de MSF em Cabo Delgado é o fornecimento de cuidados para pessoas vivendo com HIV. Segundo Filomena, a prestação desses serviços apresenta dois grandes desafios: garantir serviços de acompanhamento consistentes para pacientes deslocados de suas casas pela violência; e abordar o estigma dentro da comunidade.

“[Normalmente, os pacientes] vêm até nós porque tiveram uma piora”, diz Filomena. “Nós os tratamos, estabilizamos e reiniciamos a terapia antirretroviral, mas não sabemos se eles retornam ao seu local de origem ou não. Esses pacientes raramente se mantêm no programa. Uma vez nos estágios avançados da infecção por HIV, os pacientes sem progresso contínuo do tratamento são mais suscetíveis a infecções [mais avançadas] do terceiro e do quarto estágios.”

Uma mentora para gestantes e novas mães

Trabalhando em parceria com Filomena, Cristina Virgílio, que exerce a função de Mãe Mentora, tem um papel crucial na prevenção da transmissão do HIV de mãe para filho. Cristina realiza sessões de conscientização para gestantes e novas mães vivendo com HIV, incentivando-as a buscar apoio e permanecer em tratamento.

Ela mesma vive com o HIV e é um exemplo positivo para as mulheres que participam do projeto, mostrando-as que, mesmo com o vírus, é possível criar uma família e viver uma vida saudável e feliz. Por meio desta abordagem de pares apoiada pelo Ministério da Saúde de Moçambique, Cristina ajuda a desenvolver confiança e desconstruir equívocos sobre o HIV, promovendo uma comunidade mais informada e inclusiva.

“No começo, quando você recebe o diagnóstico [de infecção por HIV], pode ser difícil”, afirma Cristina. “É importante apoiar a pessoa, tranquilizá-la e mostrar que este não é o fim do mundo. Eu vivo com HIV há muitos anos. Tenho tomado minha medicação regularmente, e nada sério [de ruim] aconteceu. Tenho filhos que nasceram saudáveis. Por exemplo, minha filha não vive com o HIV. Ela está crescendo bem, e neste ano vai fazer 13 anos de idade. É possível ter filhos saudáveis quando você segue o tratamento adequado.”

Germana Toni, que está recebendo terapia antirretroviral no hospital rural de Mocímboa da Praia, descobriu que vive com HIV quando engravidou pela primeira vez. Receber apoio de uma Mãe Mentora foi essencial para que ela continuasse com seu tratamento durante toda a gravidez.

“Ela [Cristina] sempre me tratou com gentileza e respeito, oferecendo conselhos valiosos que me motivam a continuar meu tratamento”, compartilha Germana. “Encorajo as mulheres e a comunidade em geral: se o teste for positivo para o HIV, é melhor começar o tratamento imediatamente para garantir uma vida saudável.”

Construindo uma comunidade de apoio

Trabalhando juntos, profissionais de saúde como Filomena Januário e Cristina Virgílio estão avançando para quebrar o estigma e criar um ambiente seguro para as pessoas vivendo com HIV. O trabalho destaca a importância de soluções orientadas para a comunidade na abordagem dos desafios médicos e sociais dos cuidados relacionados ao HIV em contextos de conflito.

No entanto, segundo Filomena, há uma enorme necessidade de apoio mais amplo. Para garantir que todas as pessoas vivendo com HIV impactadas pelo conflito em Cabo Delgado possam ter acesso a um tratamento consistente e que salve vidas, são essenciais mais recursos e ação coletiva.

Filomena tem seu próprio objetivo pessoal. “Meu trabalho vem com desafios”, diz ela. “Não se trata apenas de tratamento, mas também de melhorar a vida dos pacientes que vivem com HIV e [outras doenças como] a tuberculose. Não ficarei satisfeita até atingirmos uma taxa de retenção de mais de 80% [de pacientes que conseguem continuar o tratamento]. Estou comprometida a fazer o que for possível para que isso aconteça. Só então me sentirei pronta para sair de Mocímboa da Praia, sabendo que alcancei o meu objetivo.”

Compartilhar