MSF capacita profissionais de saúde para trabalhar em áreas violentas no Rio

Organização repassa sua vasta experiência internacional e no Brasil a agentes de saúde, médicos e enfermeiros. A idéia é dar recomendações sobre como proceder e não prejudicar o trabalho na hora de atender pacientes em regiões de vulnerabilidade social

Médicos Sem Fronteiras (MSF), em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, vai treinar até agosto mais de 400 profissionais de saúde que atuam em áreas de vulnerabilidade social, nas Oficinas de Capacitação em Segurança para Equipes do Programa de Saúde da Família (PSF). Os cursos têm a duração de duas semanas e são os primeiros do gênero realizados no Rio. Cada turma consiste em cerca de 80 médicos, enfermeiras e agentes comunitários de saúde, que recebem treinamento de MSF com recomendações sobre como agir diante das situações de risco nas áreas onde trabalham. Até agora os profissionais treinados fazem parte das chamadas CAPs (Coordenações da Área Programática). A primeira foi a CAP 3.1, da qual fazem parte comunidades como Alemão, Grotão, Vigário Geral, Nova Holanda, entre outras. Foram treinados ainda profissionais da CAP 5.1, que engloba a área de Bangu e Padre Miguel, e da CAP 2.2 (área da Tijuca e do Alto da Boa Vista). Pelo menos uma outra turma, formada por profissionais da CAP 3.3 (Madureira), será treinada nos próximos meses. A idéia é que o projeto seja expandido para outras regiões brasileiras.

Com quase 35 anos de experiência internacional em trabalhar em áreas vulneráveis e marcadas pela violência, MSF acredita que, apesar de não haver uma fórmula para agir em uma situação de risco, seguir algumas regras ajuda a minimizar eventuais incidentes – que podem acabar prejudicando o trabalho do profissional e o atendimento que ele presta à comunidade.

"Depois de 10 anos desenvolvendo programas em áreas violentas do Rio, nos demos conta de que não tínhamos problemas graves de segurança e que a violência não impedia nossos profissionais de trabalhar nessas comunidades. Percebemos então que era a bagagem que trazíamos de mais de 30 anos de experiência que fazia com que trabalhássemos de outra forma e encarássemos o risco e a violência de maneira clara e objetiva. A possibilidade de prestar cuidados de saúde em áreas de risco depende de vários fatores como o comportamento dos profissionais; a informação pró-ativa sobre quem eles são e sobre que trabalho realizam; o uso permanente de identificação; a importância de se realizar o trabalho sem se envolver com as causas políticas e estruturais que provocam a violência; o reconhecimento dos fatores de risco e a busca de meios para contorná-los. Sem falar no interesse único e exclusivo pelos pacientes e pela prática ética da medicina. Como sabemos que a violência em comunidades é uma das reclamações freqüentes entre os profissionais de saúde da família, resolvemos tentar compartilhar nossa experiência", conta Simone Rocha, diretora-executiva de MSF no Brasil.

Cada turma a ser capacitada é dividida em quatro grupos, com uma média de 20 a 25 participantes cada. Os profissionais são treinados pelo enfermeiro sanitarista Mauro Nunes e pela psicóloga Rosana Ballestero Rodrigues. Mauro já trabalhou em projetos de MSF no Rio e em países como Angola, Moçambique, Nigéria e Indonésia. Rosana tem vasta experiência em comunidades do Rio e participou de projetos anteriores de Médicos Sem Fronteiras – como o da comunidade de Marcílio Dias, no Complexo da Maré.

Durante o treinamento, os profissionais do PSF têm a oportunidade de trocar experiências com outros colegas. Dentre as várias situações de risco identificadas pelos profissionais estão os confrontos armados dentro das comunidades, que pegam a população de surpresa. Muitos não sabem como proceder para preservar sua segurança nos momentos de confrontos.

Um exemplo é o de uma das enfermeiras que freqüentaram o curso. Ela, que preferiu não ser identificada, conta que uma vez estava em cima do morro medindo a pressão de moradores, em um carro de uma amiga, quando um Caveirão (veículo usado pela polícia) começou a subir. "Estava, junto com uma outra funcionária, entre os meninos do tráfico e a polícia. Os meninos começaram a jogar granadas e a polícia reagiu. Minha colega entrou em pânico, quis entrar no carro e descer. Achei que iríamos morrer", conta.

A recomendação de MSF seria abandonar o carro ("nenhum bem material se compara à perda de uma vida de um profissional" é a recomendação da organização), procurar um abrigo em uma das casas e só sair quando tudo estivesse terminado.

Para a enfermeira, esta troca de experiências e as recomendações são de extrema importância. "Trabalhando já me deparei com várias situações de risco. Em muitas delas, entrei em pânico e não sabia como agir. Um curso como esse é importante pois a experiência é repassada. Pensar que profissionais de MSF conseguem trabalhar bem em áreas muito mais violentas, na maioria das vezes sem sofrer incidentes graves, nos mostra que realizar nosso trabalho é possível e viável para ajudar as pessoas".

A tarefa dos participantes é não só ouvir e trocar experiências, mas também apresentar propostas para a elaboração de um guia de segurança que poderá ser seguido por todas as equipes de saúde da família que compõem a área de abrangência das CAPs alvo do treinamento.

MSF pretende realizar, em parcerias com governos e prefeituras de todo o Brasil, mais treinamentos desse tipo. "Nossa esperança é que os 80 treinados de cada vez atuem como multiplicadores de informação, espalhando o que aprenderam. E, claro, também que o projeto seja estendido para outras comunidades", diz Mauro Nunes.

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