“Na RDC, a mpox é apenas mais um desafio em meio a uma enxurrada de problemas”

Diretora-geral de MSF-Bélgica explica que, para conter a epidemia de mpox na República Democrática do Congo, as pessoas precisam ter acesso a recursos básicos como água.

Criança com sinais de mpox em Goma, na República Democrática do Congo. Foto: Michel Lunanga

Tejshri Shah, diretora-geral de Médicos Sem Fronteiras Bélgica e pediatra especializada em doenças infecciosas, retornou recentemente de Kivu do Norte, uma província da República Democrática do Congo (RDC), país no epicentro da atual epidemia de mpox na África. Neste artigo, ela explica que será impossível conter o vírus em locais para pessoa deslocadas, a menos que sejam feitos esforços para ouvir as necessidades das pessoas e melhorar as condições de vida terríveis com as quais elas estão lutando há muito tempo.

Em Goma, muitas pessoas com quem conversei parecem sentir que algo novo, incerto e assustador está por vir. Mas ninguém ainda pode prever o que isso significará para elas ou como impactará profundamente suas vidas.

A mpox não é novidade na RDC. A doença é endêmica em várias partes do país, e os relatos de casos têm aumentado na última década. No entanto, em Kivu do Norte e Kivu do Sul, o vírus sofreu mutações que parecem torná-lo mais transmissível entre os seres humanos. Esta é uma preocupação significativa, pois casos têm sido relatados em áreas de alta densidade populacional, como Goma – uma cidade com dois milhões de habitantes – e em locais onde centenas de milhares de pessoas buscaram refúgio por causa da crise armada em andamento em Kivu do Norte

Como podemos esperar que famílias que vivem em abrigos minúsculos adotem medidas preventivas?”

– Tejshri Shah, diretora-geral de Médicos Sem Fronteiras Bélgica e pediatra

Embora a letalidade dessa nova cepa permaneça limitada, ainda há motivos para preocupação. Por quê? Porque as condições necessárias para evitar que ela se espalhe em Goma e nos arredores simplesmente não estão disponíveis, e a capacidade de fornecer cuidados para pacientes com risco de complicações – como crianças pequenas ou pessoas vivendo com HIV avançado – continua limitada.

Como podemos esperar que famílias que vivem em abrigos minúsculos, sem água adequada, instalações sanitárias ou até mesmo sabão adotem medidas preventivas? Como crianças com desnutrição podem ter força para evitar complicações? E como podemos esperar que essa variante — que é altamente transmissível pelo contato sexual — não se espalhe em locais de deslocamento, dados os níveis dramáticos de violência sexual e exploração que afetam meninas e mulheres que vivem lá?

MSF denunciou repetidamente as condições desumanas que as pessoas enfrentam nos acampamentos de deslocados e as lacunas gritantes na resposta humanitária. Mais de dois anos após o início da chamada “crise M-23” e o deslocamento em massa que ela desencadeou, famílias que vivem nos acampamentos superlotados ainda carecem do essencial: comida, água, segurança, itens básicos de higiene, acesso a saneamento e assistência médica.

Durante uma sessão de aconselhamento à qual assisti com sobreviventes de violência sexual, uma mulher me contou que vive com seus sete filhos sob um lençol de plástico. Seu parceiro a abandonou após essa violência. Para mulheres como ela, as soluções testadas e comprovadas para prevenir a propagação da epidemia são extremamente difíceis de implementar.

Atividade de conscientização sobre mpox em de Goma. Foto: Michel Lunanga

Se ela desenvolver uma erupção por causa da mpox, será orientada a trocar seus lençóis, lavar tudo minuciosamente, desinfetar seus pertences e se isolar até se curar. Mas como ela pode lavar sem sabão e com apenas alguns litros de água disponíveis por dia? Como pode se isolar e proteger seus filhos enquanto vivem juntos sob um minúsculo abrigo de plástico? Se ela se isolar, quem vai buscar comida para as crianças? Quem vai coletar lenha? Quem vai confortar o recém-nascido?

Para ela e para todos aqueles que buscaram refúgio nos acampamentos de deslocados, a epidemia de mpox parece ser apenas mais um desafio em meio a uma enxurrada de problemas. E, para ser sincera, não é o mais urgente, dada as lutas diárias que enfrentam, incluindo surtos de outras doenças fatais, como sarampo ou cólera.

No entanto, a mpox está lá e precisa ser enfrentada. Para lidar com esse novo desafio adicional, precisamos tornar a sobrevivência mais fácil para as pessoas por meio de uma resposta que seja adaptada às suas necessidades específicas e aos desafios da vida real.

Isso começa por ouvir essas pessoas, entender suas necessidades e fornecer-lhes suprimentos básicos para o controle de infecções, como água, sabão, desinfetante e instalações sanitárias. São simples, mas essenciais. Não podemos depender somente da chegada de vacinas para resolver o problema. Melhorar as condições de vida das pessoas também é um fator crítico no combate a surtos como esse.

Junto com as autoridades de saúde, nossas equipes fazem o melhor para fornecer cuidados e conscientizar aqueles que vivem nos locais, como fazemos em outras partes do país afetadas pelo surto. Como muitos outros, esperamos que as tão esperadas vacinas cheguem à RDC o mais rápido possível. No entanto, elas não serão soluções mágicas: atores governamentais e não governamentais também devem abordar urgentemente os fundamentos da resposta à mpox, que deve ser adaptada às necessidades e às realidades das pessoas.

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