Na Somália, seca e falta de financiamento agravam a crise de desnutrição

Em 2024, equipes de MSF trataram mais de 18 mil crianças com desnutrição aguda grave em projetos da organização no país

Profissional mede braço de bebê com o MUAC, uma fita que ajuda a diagnosticar a desnutrição. © Bishar Mayow/MSF

A Somália está enfrentando uma terrível crise de desnutrição que foi agravada por secas prolongadas, conflitos armados contínuos, instabilidade econômica e um sistema de saúde fragilizado. As regiões de Baidoa e Mudug, onde Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha, são exemplos da crise que se instalou em todo o país, com milhares de crianças em risco imediato de desnutrição grave e suas consequências fatais.

A falta crônica de financiamento prejudicou os esforços humanitários, forçando a redução ou o fechamento de programas nutricionais vitais. A ameaça iminente de uma seca provocada pelo La Niña em 2025 pode levar uma população já vulnerável à beira do abismo.

MSF pede urgentemente a doadores e outras organizações humanitárias para que tomem medidas imediatas para evitar o sofrimento generalizado, pois as consequências podem ser catastróficas.

 

A última esperança de um pai para salvar seus filhos

Sem outra escolha, Kalimow Mohamed Nur precisou tomar uma decisão difícil. Diante dos filhos gêmeos fracos de fome, com os corpos extremamente pequenos e frágeis devido a repetidos episódios de vômito e diarreia, ele pediu dinheiro emprestado para custear o transporte ao hospital – um único dia de viagem que custaria uma quantia que ele levaria meses para ganhar.

Kalimow partiu em um trajeto exaustivo até Baidoa. A estrada era longa, o calor implacável, mas a promessa de atendimento médico gratuito no Hospital Regional Bay era sua última esperança.

Eles eram tão pequenos, e nós mal podíamos comprar comida suficiente. Eles estavam sempre adoecendo.”

– Kalimow Mohamed Nur, pai de dois pacientes pediátricos de MSF em tratamento para desnutrição

“Tive que pegar um empréstimo de cerca de 130 dólares (cerca de 735 reais) e viajar 300 quilômetros até Baidoa para encontrar atendimento médico gratuito”, relata Kalimow, cujos filhos gêmeos receberam tratamento para desnutrição aguda grave no Hospital Regional de Bay, apoiado por MSF.

Kalimow Mohamed Nur, enquanto aguarda atendimento dos filhos no hospital apoiado por MSF em Baidoa. © Mohamed Ali Adan/MSF

A história de Kalimow, marcada pela pobreza e pela ausência de serviços essenciais, reflete as difíceis realidades que impedem inúmeras famílias de ter acesso a cuidados de saúde. Na Somália, o tratamento que salva vidas se transformou em um direito acessível a apenas alguns.

 

Uma crise permanente

Em Baidoa e Mudug, a desnutrição se tornou uma crise persistente durante todo o ano, e não um desafio sazonal. “Estamos observando altas taxas de desnutrição, não apenas durante as épocas recorrentes de escassez”, diz Jarmilla Kliescikova, coordenadora médica de MSF na Somália. “Essa é uma crise crônica que exige uma intervenção contínua.”

Em 2024, equipes de MSF trataram 18.066 crianças com desnutrição aguda grave em projetos da organização na Somália, um aumento significativo em relação ao ano anterior. Em Mudug, as admissões em programas de nutrição ambulatorial aumentaram em 250%, impulsionadas tanto pela necessidade crescente quanto pela expansão dos esforços de divulgação dos serviços médicos.

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Baidoa também registrou um aumento nas admissões ao longo de 2024, evidenciando a necessidade das famílias que buscam atendimento. No entanto, esses esforços mal chegam à superfície do problema.

Mulheres na fila para a pesagem das crianças em um centro apoiado por MSF perto do acampamento de deslocados internos de Afmadow. © Bishar Mayow/MSF

De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), estima-se que 1,7 milhão de crianças enfrentaram desnutrição aguda em 2024, incluindo 430 mil que sofrem de desnutrição aguda grave. O trabalho de MSF, embora essencial, atingiu apenas cerca de um por cento do total da população com desnutrição, o que mostra a enorme escala da crise e a necessidade urgente de um apoio mais amplo.

Os conflitos armados e as mudanças climáticas provocaram um deslocamento em massa, forçando as pessoas a fugir para regiões com recursos já escassos. As secas repetidas devastaram as colheitas, deixando famílias que antes dependiam da agricultura e da pecuária sem recursos para se sustentar. Nos locais de deslocamento, a prevalência de desnutrição grave e moderada é alarmantemente alta, enquanto os sobrecarregados centros de saúde lutam para lidar com a situação.

 

As lacunas de financiamento estão forçando a redução de programas essenciais

Além da crise, a escassez de financiamento causou um golpe devastador na resposta humanitária. De acordo com o OCHA, apenas 56% das necessidades de financiamento humanitário da Somália foram atendidas em 2022 – um número que despencou para apenas 40% em 2024.

Em Baidoa, por exemplo, vários projetos de nutrição foram reduzidos desde 2023 e, assim como em Muidug, serviços essenciais como centros de alimentação terapêutica e cuidados primários de saúde estão sendo reduzidos ou descontinuados.

Esta é uma catástrofe que está se desenrolando em tempo real.”

– Mohammed Ali Omer, coordenador-geral dos programas de MSF na Somália

“O fechamento desses programas deixou uma lacuna devastadora”, diz Mohammed Ali Omer, coordenador-geral dos programas de MSF na Somália. “Crianças que precisam desesperadamente dos alimentos terapêuticos que salvam vidas estão se deparando com as portas fechadas. E apenas algumas comunidades conseguem acessar as vacinas, deixando-as vulneráveis a doenças evitáveis que levam a um ciclo vicioso de desnutrição. Esta não é apenas uma crise – é uma catástrofe que está se desenrolando em tempo real.”

Enquanto a Somália luta contra os contínuos períodos de seca, uma ameaça ainda maior surge no horizonte: uma seca causada pelo La Niña, prevista para 2025. O La Niña é um fenômeno climático que resfria as temperaturas da superfície do oceano e perturba os padrões climáticos globais, geralmente levando à redução das chuvas no leste da África. Com as fontes de água esgotadas e a produção de alimentos prejudicada por secas anteriores, o impacto pode ser catastrófico, forçando mais famílias a deixar suas casas e levando a um aumento da pobreza.

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