“Não há misericórdia”: palestinos em Hebron, na Cisjordânia, vivem sob o medo constante

Palestinos em Hebron relatam aumento da violência e das restrições de movimento desde a escalada brutal da guerra em Gaza.

Aliyah*, mulher palestina que vive em Hebron, com a filha nos braços. Foto: Laora Vigourt/MSF

“A situação está ruim há anos aqui. Os soldados israelenses revistam nossas casas dia e noite, as vandalizam e prendem as pessoas sem qualquer aviso”, conta Alma*, uma mulher palestina de Hebron, a maior cidade palestina da Cisjordânia, nos Territórios Palestinos.

Alma descreve a situação desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, em 7 de outubro. O apartamento dela em Hebron foi destruído por soldados israelenses há apenas alguns dias. “Desde 7 de outubro, as coisas estão muito piores, não há misericórdia. As pessoas da minha comunidade estão profundamente afetadas e vivem com medo constante”, lamenta ela.

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Aumento da violência e do assédio por parte dos colonos e soldados israelenses

Hebron serve como um evidente retrato do sofrimento dos palestinos sob ocupação: um clima generalizado de intimidação e coerção. A realidade diária da vida das pessoas se traduz em restrições de movimentos, despejos e deslocamentos forçados, demolições de casas, operações de busca e apreensão, interrupção de aulas e a presença contínua de militares e colonos (israelenses que vivem nos assentamentos da Cisjordânia).

Sala de aula fechada na Cidade Velha de Hebron, na Cisjordânia. © Laora Vigourt/MSF

A recente escalada da guerra entre Israel e Gaza apenas exacerbou a violência e as restrições impostas aos palestinos que vivem na Cisjordânia. Em 2 de janeiro, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) registrou que pelo menos 198 famílias palestinas foram deslocadas em meio à violência dos colonos e às restrições de acesso na Cisjordânia desde 7 de outubro – foram 1.208 pessoas, incluindo 586 crianças. Elas representam 78% de todos os deslocamentos relatados devido à violência dos colonos e às restrições de acesso desde o início de 2023.

“Imediatamente após o dia 7 de outubro, já podíamos ver como as coisas tomaram um rumo mais sombrio. O acesso das pessoas a serviços básicos, incluindo assistência médica e comércio, foi fortemente restringido”, relata Simona Onidi, coordenadora do projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Hebron.

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“A prestação de serviços de saúde também foi prejudicada. Devido às severas restrições de movimento e ao risco de violência tanto para os pacientes quanto para a equipe médica. Observamos uma redução de 78% nas consultas médicas realizadas por nossa equipe em outubro de 2023, em comparação com o mês anterior”, conta Onidi.

Na Cidade Velha de Hebron, localizada na área de Hebron controlada por Israel conhecida como H2, as restrições de entrada e saída são extremamente rigorosas e imprevisíveis, afetando todos os aspectos da vida dos palestinos que vivem lá. Há muito tempo, a H2 é uma das áreas mais restritas da Cisjordânia, com 21 pontos de controle permanentes operados pelas forças israelenses que regulam o movimento dos residentes palestinos e impõem barreiras significativas aos profissionais de saúde que tentam acessar a área.

Estamos todos aterrorizados. As pessoas acham que a situação em Gaza também acontecerá na Cisjordânia. Seremos os próximos? Só não sabemos quando.”
– Salma*, moradora da área H2 em Hebron.

Nas primeiras semanas após a guerra entre Israel e o Hamas, as forças israelenses restringiram ainda mais os movimentos, abrindo os pontos de controle apenas durante uma hora pela manhã e uma hora à tarde, e somente alguns dias por semana. Às vezes, os palestinos não têm permissão para sair de casa por quatro dias consecutivos, nem mesmo para levar o lixo para fora ou abrir as janelas.

“Não posso comparar o nível de intensidade de hoje com o de antes [da guerra]. É como se os colonos e o exército israelense não tivessem limites”, diz Aliyah*, uma mulher palestina de Tel Rumeida, em H2.

“Estou grávida e, nesta manhã, por exemplo, os soldados me pediram para passar pela máquina de raios X três vezes [no posto de controle]. Pedi para não passar, para a segurança do meu bebê, mas eles não me ouviram – como se nem acreditassem que estou grávida”, conta Aliyah.

“Estamos todos aterrorizados. As pessoas acham que a situação em Gaza também acontecerá na Cisjordânia. Seremos os próximos? Só não sabemos quando”, questiona Salma*, outra moradora da área H2 em Hebron.

Restrições de movimento comprometem os cuidados com a saúde

Como a interrupção do acesso médico aumentou nos últimos dois meses devido às restrições de movimento e à violência, as equipes de MSF expandiram progressivamente a resposta para fornecer assistência médica às pessoas que não conseguem chegar às instalações de saúde.

Desde novembro de 2023, as clínicas móveis de MSF adicionaram seis locais às nossas atividades, atingindo um total de 10 áreas que cobrem a parte externa e interna da Cidade Velha de Hebron, e também os vilarejos remotos de Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia. Nossas equipes nas clínicas móveis oferecem consultas gerais, serviços de saúde reprodutiva e apoio à saúde mental. Em novembro e dezembro de 2023, realizamos 1.900 consultas nesses diferentes locais.

Clínica móvel de MSF em Masafer Yatta. © Laora Vigourt/MSF

“O acesso às instalações médicas tem se tornado cada vez mais perigoso para as pessoas, com o aumento dos postos de controle e toques de recolher forçados”, diz Juan Pablo Nahuel Sanchez, referente médico do projeto de MSF em Hebron.

“Ao mesmo tempo, a prestação de serviços de saúde também se tornou mais desafiadora para as organizações médicas, pois as restrições de movimento afetaram a capacidade dos profissionais de saúde de chegar às instalações. Como resultado, a prestação de serviços médicos foi interrompida”, diz ele.

Na área H2 de Hebron, existe apenas uma unidade médica administrada pelo Ministério da Saúde palestino para pacientes com doenças agudas e crônicas. Mas, desde 7 de outubro, a equipe do Ministério da Saúde não tem permissão para acessar a área, deixando as pessoas sem atendimento médico. Para os pacientes com doenças crônicas, em particular, a falta de acompanhamento para garantir a continuidade do tratamento é uma grande preocupação. Agora, nenhuma outra organização além de MSF pode operar na área.

Equipe médica de clínica móvel de MSF realiza atendimento em Hebron. © Laora Vigourt/MSF

“Não são permitidos carros, nem mesmo ambulâncias, dentro do H2. E se você estiver grávida e prestes a dar à luz?”, indaga Nadia*, moradora do H2, em Hebron. “Você precisa caminhar até a colina superior dos postos de controle e rezar para que os soldados o deixem passar facilmente. Não é porque se trata de [um problema de] saúde que de repente você tem direitos”, diz ela.

Fora da cidade de Hebron, no remoto deserto montanhoso de Masafer Yatta, as pessoas têm enfrentado uma imensa pressão das autoridades israelenses e dos colonos para deixar a área. Na região, os despejos, as demolições de casas e as restrições de movimento também se intensificaram desde a recente escalada e impediram drasticamente o acesso das pessoas à saúde.

“Estamos atendendo pacientes que não vão ao médico há semanas ou meses. As condições mais comuns são infecções respiratórias e doenças crônicas. Os medicamentos são caros e, sem seguro de saúde, os pacientes não têm como pagar por eles”, diz Juan Pablo Nahuel Sanchez.

Impacto à saúde mental

Paralelamente, serviços de saúde mental, incluindo primeiros socorros psicológicos, aconselhamento e psicoterapia, continuam a ser oferecidos às pessoas afetadas pela situação. Nossos psicólogos estão observando uma clara deterioração na saúde mental das pessoas.

“O que chama a atenção aqui é que não estamos tratando apenas de transtornos de estresse pós-traumático, mas de traumas contínuos. As pessoas estão sendo expostas a eventos traumáticos diariamente, o que dificulta a obtenção de alívio”, diz um psicólogo do MSF.

É de partir o coração, criar filhos nesse ambiente.”
– Aliyah, palestina que vive em Hebron, na Cisjordânia.

A deterioração da saúde mental das pessoas não afeta apenas aqueles que são capazes de compreender o alcance e o impacto da violência causada pela ocupação. Até mesmo bebês e crianças pequenas estão apresentando sintomas de ansiedade, como enurese noturna (urinar na cama), pesadelos e isolamento.

“É de partir o coração criar filhos nesse ambiente”, desabafa Aliyah. “Sabe o que minha filha me disse outro dia? ‘Mamãe, estou com muito medo’ – e ela tem apenas 2 anos de idade”.

 

MSF está presente na Cisjordânia desde 1988, atualmente com atividades em Hebron, Nablus e Jenin. Nossas equipes realizam projetos de saúde mental com atividades de extensão e oferecem serviços médicos e cuidados básicos de saúde por meio de clínicas móveis. Também realizamos atividades de capacitação, como treinamentos em instalações de saúde e hospitais para planejamentos após acidentes em massa, respostas a emergências e triagem de pacientes.

Além da expansão das atividades médicas desde 7 de outubro, nossa equipe aumentou as atividades de promoção da saúde nas comunidades e a distribuição de itens de primeira necessidade, kits de higiene e cestas de alimentos para os habitantes de Gaza deslocados internamente e para os residentes da Cisjordânia afetados pela violência e pelo deslocamento forçado.

*Os nomes das pessoas entrevistadas foram alterados e outros fatos que poderiam ajudar a identificá-las foram removidos por medidas de segurança.

 

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