Para Milton Pokorny, 65 anos, cirurgião da cidade de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, com 34 anos de experiência na área, não há limites para o aprendizado de um profissional da saúde. E foi essa a convicção que o levou a participar de seu primeiro projeto com Médicos Sem Fronteiras, em setembro de 2012, no Burundi. Em Gitega, segunda maior cidade do país, ele integrou a equipe cirúrgica da organização especializada no reparo de fístulas obstétricas, que são rupturas no canal vaginal que causam incontinência urinária e intestinal, consequência de longos e complicados partos.
Foi a mais velha de suas três filhas que inspirou Pokorny a se juntar a MSF. Leticia é fisioterapeuta e já trabalhou com a organização na Nigéria, República Democrática do Congo, Haiti, Sri-Lanka, Iêmen e Jordânia. “Sempre tive vontade de fazer alguma coisa assim, mas o tempo vai passando, você forma família, tem que cuidar dos filhos, da mulher… Eu ouvia a Leticia contando as experiências dela, falando da seriedade da organização e do prazer de trabalhar com ajuda humanitária e resolvi que esse seria o momento de realizar um antigo sonho”, conta.
Em Gitega, o médico envolveu-se com os pacientes e valoriza o aspecto humano da experiência. “A maioria das mulheres que tratávamos havia passado por um enorme sofrimento: perderam filhos, tiveram de conviver com aqueles odores todos causados pelas incontinências. Temos que ter um enorme respeito”, diz Milton. Ele conta que chegou a tratar de mulheres de 35 anos que haviam passado 19 com fístula. E a grande dificuldade para os médicos é não saber precisamente se a cirurgia será bem-sucedida. “O resultado é uma incógnita porque depende da situação dos tecidos. Houve casos de pacientes que já tinham sido submetidas a dez cirurgias para reparo da fístula, mas todas mal sucedidas”, afirma.
A dificuldade de acesso a cuidados de saúde no país como um todo é grande. Milton afirma que, ao menos na região em que atuou, o sistema de saúde pública é inexistente e os direitos das mulheres a cuidados por até 42 dias após o parto, ignorados. Equipes de MSF visitam vilas para buscar pacientes e levar até a clínica, para ali serem examinados. Quando identificados casos de fístula, as pacientes começam a ser preparadas para a cirurgia, chegando a permanecer por até um mês na clínica. “ Elas chegam aqui desnutridas, com anemia. É preciso tratar tais condições e, também a malária, verminoses e infecções vaginais.”
No projeto em que atuava, Milton auxiliou um profissional da Dinamarca em 65 procedimentos e realizou 22 cirurgias sozinho. Ele afirma que durante todo o trabalho, não houve constrangimento algum por conta da diferença de idade e que suas relações com os membros da equipe foram bastante tranquilas. Prova disso foi o fato de que, após o término do primeiro mês no projeto, Milton foi convidado a estender sua permanência no projeto por mais 30 dias, e aceitou. Pessoalmente, ele conta que a experiência foi bastante enriquecedora: “Vivemos tantas vidas quantas quisermos. Às vezes, por não sairmos da rotina, não percebemos nossa capacidade de nos reinventarmos, de nos recriarmos. Tive a sensação de estar, ali, vivendo uma segunda vida. Quando a gente se dispõe a passar alguma dificuldade e a superamos, podemos viver uma eternidade em uma vida”, conclui, poetizando.
MSF oferece serviços obstétricos de emergência no Burundi desde 2006.