Nova política britânica de saúde é perigosa para grupos vulneráveis

Medida sugere checagem de identificação para todos que usam o serviço público de saúde; política deve dificultar o acesso de pessoas vulneráveis a cuidados médicos

Medida sugere checagem de identificação para todos que usam o serviço público de saúde; política deve dificultar o acesso de pessoas vulneráveis a cuidados médicos

O governo do Reino Unido declarou que pretende introduzir a verificação da identidade antes de oferecer cuidados de saúde pelo NHS (sistema pública de saúde do país). Se isso for aprovado, as consequências não serão apenas uma violação da ética médica; podem também ser mortais.

Profissionais médicos e organizações humanitárias estão receosos de que isso impedirá o acesso da parcela mais vulnerável da sociedade a cuidados médicos.

Após ter trabalhado no exterior com Médicos Sem Fronteiras (MSF), conheci, em primeira mão, as consequências mortais que as barreiras em torno de cuidados de saúde podem gerar.

Sob juramento

Enquanto tal política se diz destinada a cobrar dos “turistas de saúde” que se aproveitam de nosso sistema – um grupo que, convenhamos, é insignificante –, o grupo mais afetado inclui vítimas do tráfico humano e pessoas desabrigadas, além de imigrantes e refugiados sem documentação.

Essas pessoas, que, em sua maioria, fogem da estigmatização ou da violência, terão ainda mais dificuldade no acesso a cuidados de saúde. Os cidadãos britânicos sem documentação ou residência serão os mais vulneráveis. Ainda não está claro como o sistema irá lidar com esses indivíduos.

Como médico, sempre quero me concentrar em tratar o paciente que está na minha frente, sem me preocupar se ele tem direito a se consultar comigo ou em saber quem é ele e de onde vem. O juramento que fazemos como médicos nos proíbe explicitamente de julgar indivíduos sob qualquer critério que não seja a sua condição de saúde.

Consequências graves

Apesar de a nova política alegar ser direcionada a penas a “cuidados não urgentes”, ela parece incluir serviços de maternidade, o que é preocupante.

Isso ficou evidente na recente experiência-piloto da política na unidade de maternidade do hospital St. Georges, em Londres. Qualquer pessoa que tenha vivenciado um parto, seja profissional ou pessoalmente, certamente classificaria esse como um cuidado de emergência.

Para nós, ainda não está claro o que os criadores da nova política esperam fazer com uma mulher abandonada em trabalho de parto depois que o cuidado tiver sido negado a ela em um hospital.  

Muitas gestantes podem se ver obrigadas a fazer o parto sem o suporte adequado de profissionais de saúde, e, com isso, se exporem a complicações perigosas.

Eu vi isso acontecer em países afetados por conflitos, como a República Centro-Africana (RCA) e a República Democrática do Congo (RDC), onde, em decorrência da pobreza extrema e de conflitos armados, as mulheres têm acesso limitado ou bloqueado aos cuidados de saúde de que precisam.

Na Grã-Bretanha, essa situação não só seria antiética, como também muito perigosa em termos de consequências médicas e legais.

Uma farsa

A nova política parece uma distração criada pelo governo do Reino Unido para mascarar seu fracasso em financiar suficientemente a NHS.

O governo está procurando colocar esse ônus em algumas das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Como médico e agente humanitário, me posiciono contra isso.

Profissionais de MSF em todo mundo, assim como eu, testemunham o sofrimento decorrente da restrição a cuidados de saúde, especialmente entre grupos marginalizados ou em contextos de conflito armado. Permitir que essa injustiça aconteça no Reino Unido é um ultraje.

Essa política nociva e falaciosa deveria ser revogada.
 

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