O longo caminho para a recuperação de crianças e adolescentes feridos pela guerra em Gaza

MSF fornece tratamento para a pequena parcela de jovens pacientes palestinos que conseguiram ser evacuados para Amã, na Jordânia

Karam, que ficou gravemente ferido em Gaza, em uma sessão de fisioterapia no hospital de MSF em Amã, na Jordânia. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

Quando a luz do sol atravessa a pequena janela do quarto de hospital, raios alaranjados iluminam a lateral do rosto de Karam, de 17 anos de idade, evidenciando profundas cicatrizes brancas em sua bochecha esquerda. Ele, sentado, se levanta lentamente e usa sua mão direita para prender um longo pedaço de plástico da cor de sua pele em seu braço esquerdo. Karam está no hospital administrado por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Amã, na Jordânia.

Eu estava com medo de que talvez eu já estivesse morto.”
– Karam, paciente de MSF

“Eu tinha escutado que, quando você morre, você ainda pode ouvir as vozes das pessoas enquanto elas te enterram, que você pode ouvir suas orações e seus passos enquanto elas se afastam do seu local de descanso final”, compartilha Karam.

“Na ambulância, eu podia sentir as lombadas, mas não conseguia abrir meus olhos. Eu ainda podia ouvir vozes, então eu estava com medo de que talvez eu já estivesse morto”, diz ele.

Em 14 de fevereiro de 2024, um ataque aéreo israelense destruiu a casa de Karam em Gaza, Palestina, matando todos em sua família, exceto sua irmã de 7 anos de idade, Ghina, e seu pai, Ziad. Karam ficou gravemente ferido, com queimaduras por todo o rosto e corpo.

Naquele dia, o hospital de Al-Aqsa estava sobrecarregado com feridos após um bombardeio israelense no acampamento de Nuseirat, no centro de Gaza. Quando Karam chegou ao hospital, a equipe de emergência tentou reanimá-lo, mas sem sucesso.

Uma hora depois, o tio de Karam, que trabalhava como enfermeiro no hospital de Al-Aqsa, entrou no pronto-socorro e percebeu que seu sobrinho ainda estava respirando. Ele levou Karam às pressas para a sala de cirurgia, onde a equipe de MSF realizou as manobras de reanimação cardiopulmonar e uma cirurgia de emergência, salvando sua vida.

O jovem Karam durante uma sessão de fisioterapia no hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã, Jordânia. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

Seu pai, Ziad, um psicólogo da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês), estava trabalhando em um centro de refúgio quando a casa de sua família em Nuseirat foi atingida.

“Quando soube do ataque, corri para Al-Aqsa, pois meu vizinho me disse que Ghina e Karam tinham sido levados para lá”, lembra Ziad. “Cheguei ao pronto-socorro e havia corpos por todo lugar, espalhados pelo chão. Encontrei minha filha, Ghina. Ela tinha queimaduras de primeiro grau no rosto, ombros e costas.”

Ziad com seus filhos, Ghina e Karam, no quarto do hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

O impacto da bomba lançada na casa de Ziad foi tão profundo que os destroços dela foram sugados para o chão. A bomba matou 13 familiares de Ziad, incluindo sua esposa, seu filho mais novo, Mohammed, e seu filho mais velho, Tareq. Este último estudava odontologia na Rússia, mas havia ido visitar a família e não conseguiu mais deixar Gaza quando a guerra começou.

Quando Karam foi levado para a sala de emergência, não percebi que era meu filho. Ele não tinha características humanas. Seu corpo estava completamente preto, queimado.”
– Ziad, pai de Karam

Após estabilizar Karam, a equipe de MSF e do Ministério da Saúde do hospital Al-Aqsa realizou seis cirurgias plásticas em seu corpo gravemente queimado. Ele ficou em coma durante sete dias.

“Quando Karam foi levado para a sala de emergência, não percebi que era meu filho”, lembra Ziad. “Ele não tinha características humanas. Não havia mais roupas nele. Seu corpo estava completamente preto, queimado. Seus olhos estavam fechados.”
Karam foi posteriormente evacuado para o hospital flutuante dos Emirados em Al-Arish, no Egito, antes de ser transferido de avião para o hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã, na Jordânia, onde atualmente recebe cuidados de reabilitação abrangente, junto com sua irmã e outros pacientes que foram evacuados de Gaza.

Milhares de pessoas que precisam de cuidados médicos especializados estão presas em Gaza

O pequeno número de pacientes de Gaza recebendo reabilitação vital no hospital de MSF em Amã é apenas uma gota na superfície de um oceano profundo de necessidades em toda a Faixa de Gaza.

“Sabemos, com base em nossa experiência no hospital de cirurgia reconstrutiva em Amã, onde tratamos pessoas com ferimentos de guerra na região por quase 20 anos, que normalmente até 4% das pessoas feridas pelos conflitos precisarão de cirurgia reconstrutiva”, explica Moeen Mahmood Shaief, coordenador-geral de MSF na Jordânia.

“No caso de Gaza, estamos falando de cerca de 100 mil pessoas que foram feridas desde 7 de outubro, portanto, estamos olhando para até 4 mil pessoas em Gaza que precisam de cirurgia reconstrutiva e reabilitação abrangente”, afirma Shaief.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 41 mil pessoas foram mortas em Gaza desde o início da escalada da guerra, em 7 de outubro de 2023, e 95 mil pessoas ficaram feridas – pelo menos 12 mil delas necessitam de evacuação médica*.
No entanto, o processo que permite que um paciente ferido seja encaminhado para tratamento fora da Faixa de Gaza é longo e complicado. Os critérios das autoridades israelenses para aprovação de solicitações não são claros, e os pacientes muitas vezes têm que esperar meses por uma resposta. Quase 60% das solicitações de evacuações médicas de Gaza são recusadas, de acordo com a OMS. Isso inclui solicitações para evacuar crianças feridas e seus cuidadores.

“Dos oito casos para os quais solicitamos evacuação médica de crianças com seus cuidadores em agosto, apenas três foram aprovados pelas autoridades israelenses”, relata Hani Isleem, coordenador do projeto de MSF para evacuações médicas de Gaza.

“Faremos uma nova solicitação para o próximo grupo, mas está 100% evidente que eles não aprovarão todos os pacientes. Talvez eles desconfiem da permissão para que adultos deixem a Faixa de Gaza, mas isso não pode explicar a recusa de evacuar crianças”, conclui Isleem.

MSF pede às autoridades israelenses que garantam evacuações médicas para os palestinos que precisam de cuidados médicos especializados, incluindo seus cuidadores, e que outros Estados recebam e facilitem o tratamento fora da Faixa de Gaza, garantindo também que todos os pacientes e seus cuidadores tenham retorno seguro, voluntário e digno a Gaza.

Hazem, de 8 anos (centro), Deema, de 11 (direita), e Eman, a mãe das duas crianças. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum 

Deema e Hazem

Deema, de 11 anos de idade, e sua família, estavam abrigados em sua casa na cidade de Gaza quando a residência de seu vizinho foi atingida por um ataque aéreo israelense, em 10 de outubro de 2023. Deema estava no quarto andar segurando seu sobrinho – um bebê – nos braços, quando o prédio desabou sobre deles. Deema caiu quatro andares até o térreo.

“Estava tudo escuro sob os escombros”, diz Deema. “Eu não conseguia abrir meus olhos e mal podia respirar. Não conseguia ouvir ninguém e não podia falar, havia poeira e pedras cobrindo meu rosto. Eu estava convencida de que iria morrer.”

“Consegui mover minha mão sob os escombros e usei um cabo para sinalizar às pessoas que eu estava lá. Lembro-me de ouvir vozes e sentir o ar na minha perna, e logo as pessoas estavam me puxando para fora e me levando às pressas para a ambulância. Até hoje, eles não encontraram meu sobrinho”, relata Deema.

Cerca de 75 pessoas foram mortas no ataque, incluindo o irmão de 14 anos de Deema, Hamza. Seu irmão mais novo, Hazem, estava jogando futebol do lado de fora e também ficou gravemente ferido quando o prédio desabou. Depois que a poeira baixou e as equipes de resgate chegaram ao local, Deema e Hazem foram levados às pressas para o hospital Al-Shifa, onde receberam atendimento médico de emergência.

Devido aos bombardeios incessantes na cidade de Gaza, Deema, Hazem e sua mãe, Eman, ficaram no hospital Al-Shifa por seis meses, onde se alimentavam, dormiam e recebiam cuidados médicos, junto com milhares de outros palestinos que estavam se abrigando dentro da instalação de saúde.

Em 18 de março de 2024, as forças israelenses cercaram o hospital, forçando milhares de pessoas que estavam abrigadas no local a fugir. No caos da evacuação, Deema se separou de sua mãe e de Hazem, que tiveram que se deslocar para o sul. Enquanto isso, Deema conseguiu se reunir com seu pai e se abrigou com ele na Escola Asma’a, na Cidade de Gaza, onde permaneceram por 45 dias.

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“Ficamos em uma sala de aula com cerca de 50 famílias”, conta Deema. “Nós quase não tínhamos comida ou água, e não havia eletricidade ou gás, então tivemos que acender fogueiras. Meu ombro estava quebrado, e eu não conseguia movê-lo de jeito nenhum. Mal conseguia andar naquela época.”

Hazem (centro), Eman (direita) e Deema (esquerda) no quarto do hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã, Jordânia. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

No início de maio, Deema finalmente conseguiu ir para o sul de Gaza, onde se reuniu com sua mãe e Hazem em Rafah. Uma semana depois, eles foram evacuados para tratamento médico – primeiro para o Egito e depois para o hospital de MSF em Amã, onde Deema e Hazem continuam a passar por cirurgias reconstrutivas, fisioterapia e suporte de saúde mental.

É difícil para mim pensar no futuro enquanto houver guerra em Gaza.”
– Deema, paciente de MSF de 11 anos de idade

Deema sofreu fraturas no fêmur e no ombro direitos. Ela também teve um ferimento aberto na testa, como resultado do ataque à sua casa. Em Amã, ela está trabalhando diariamente com a equipe de fisioterapia de MSF para que seus ossos fraturados se curem antes que o fixador externo em sua perna possa ser removido. Com o tempo, ela espera conseguir recuperar o movimento total de seus membros.
“Eu não conseguia mover meu tornozelo e o meu braço quando cheguei à Jordânia, mas com a ajuda da cirurgia e da fisioterapia, consigo movê-los novamente”, diz Deema. “Mas é difícil para mim pensar no futuro enquanto houver guerra em Gaza.”

O impacto na saúde mental das pessoas feridas pela guerra de Gaza

As equipes de saúde mental de MSF que tratam pacientes no hospital de Amã notaram que, antes do início da guerra, os palestinos de Gaza já sofriam de depressão, muitas vezes relacionada ao desemprego, pobreza acentuada, bem como deficiências e amputações causadas por guerras anteriores. No entanto, desde 7 de outubro, a saúde mental da população de Gaza se deteriorou drasticamente.

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“Muitos pacientes que vêm de Gaza para o hospital de Amã estão passando não apenas por transtorno de estresse pós-traumático, mas até mesmo por síndrome de estresse agudo”, diz Ahmad Mahmoud Al Salem, psiquiatra de MSF no hospital em Amã. “Isso significa que os pacientes geralmente têm muitos pesadelos e muitos flashbacks, assim como variações agudas de humor, insônia e bloqueio de memória em relação ao ocorrido.”

Este não é um trauma comum. Esta é uma catástrofe enorme e atormentadora.”
– Al Salem, psiquiatra de MSF em Amã

Muitos palestinos em Gaza testemunharam a destruição de suas casas e a morte de suas famílias. Muitos sofreram ferimentos que mudaram suas vidas. Além disso, eles estão constantemente aprendendo a lidar com o luto e com a perda de mais familiares e amigos.

“Este não é um trauma comum”, diz Al Salem. “Esta é uma catástrofe enorme e atormentadora. Psicologicamente, suas mentes não conseguem suportar todo esse estresse.”

Hazem brincando no hospital de cirurgia reconstrutiva de MSF em Amã. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

A equipe de saúde mental do hospital de MSF em Amã fornece terapia abrangente aos pacientes que sofreram traumas agudos. As crianças recebem apoio psicológico individual, incluindo atividades educacionais e terapia ocupacional, para ajudá-las a superar o trauma. Os casos mais graves são encaminhados para suporte psiquiátrico e medicação.

“Os adolescentes são particularmente vulneráveis ao estresse agudo e aos ferimentos que mudam a vida que sofreram”, ressalta o psiquiatra Al Salem.

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“Os adolescentes podem sentir um sofrimento extremo, pois estão apenas começando a formar sua personalidade e identidade”, diz o psiquiatra. “Eles estão começando a entender seu lugar no mundo e estão se perguntando: ‘Serei produtivo um dia, serei atraente, serei capaz de garantir meu sustento?’”

De acordo com o psiquiatra Al Salem, pacientes adolescentes que sofreram ferimentos terríveis que mudaram suas vidas precisarão de psicoterapia de longo prazo, pois não só precisarão de apoio para lidar com memórias dolorosas e traumas mentais, como também precisarão de ajuda para reconstruir sua autoestima e aprender a viver com uma deficiência.
“Essas crianças precisam de apoio para reconstruir sua autoestima e valor próprio”, diz Al Salem. “Tentamos trabalhar com elas para fortalecê-las por meio da terapia ocupacional e mostrando a elas que podem crescer e se recuperar. Mas isso leva tempo.”

Um segundo de cada vez

Para os jovens pacientes palestinos no hospital de MSF em Amã, o futuro continua obscuro e incerto. Ainda não há um lugar seguro em Gaza, e embora eles possam retornar fisicamente a Gaza em algum momento, as perspectivas são sombrias. Todos perderam familiares, assim como suas casas e escolas.

Deema quer voltar para a escola e ver sua família, mas por enquanto isso não será possível – não antes que a guerra acabe e que Gaza seja reconstruída.

“Eu só queria poder voltar para a escola e terminar meus estudos, e então eu gostaria de me tornar uma engenheira”, diz Deema. “Eu queria que Gaza pudesse voltar a ser como era antes. Não queremos ser deslocados ou expulsos, só queremos voltar para nossas vidas antes da guerra.”

Cinco meses após o ataque catastrófico em sua casa, Karam está andando novamente. Ele consegue mover seu braço e seu olho esquerdo está lentamente reabrindo – uma recuperação quase milagrosa, considerando que ele foi dado como morto quando chegou no hospital Al-Aqsa.

Karam em sessão de fisioterapia no hospital de MSF em Amã. Setembro de 2024. © Moises Saman/Magnum Photos

Hoje, Karam sorri enquanto solta suas muletas e agarra as barras estabilizadoras paralelas no setor de fisioterapia, para dar alguns passos à frente. Antes da guerra, ele queria se tornar dentista, como seu irmão mais velho, Tareq, mas desde que foi ferido, ele não tem certeza se isso será possível.

“Estou dando um passo de cada vez”, diz Karam. “Se a guerra acabar, se Deus quiser, voltaremos para Gaza. É meu país, é onde passei minha vida inteira. Meus amigos estão lá. Mas, por enquanto, estou aqui e quero melhorar. Um segundo de cada vez.”

*Dado da OMS em agosto de 2024.

 

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