“O morador de rua não se vê como cidadão. Como alguém que tem direitos”

Médico do projeto Meio-fio, de MSF, que oferece atendimento médico e psicossocial à população em situação de rua no Rio de Janeiro, David Oliveira fala nesta entrevista sobre as dificuldades enfrentadas por esta população no que diz respeito à saúde.

Quais as dificuldades enfrentadas pela população adulta em situação de rua no que diz respeito às questões de saúde?

Quando falamos de saúde não se trata apenas de ausência de doença. A saúde é a presença do bem estar na vida do indivíduo. É ele se sentir integrado ao meio em que vive, aceito, amado, enfim, feliz. Vou falar aqui das dificuldades relacionadas à área médica e à problemas clínicos. A primeira grande questão é que a pessoa que vive nas ruas tem um risco maior de adquirir doenças: Alimenta-se mal, está submetido a alterações climáticas, dorme mal, compartilha espaços aglomerados e vive sob intenso nível de stress, com medo de ser roubada ou agredida. Outra dificuldade é a da percepção do individuo em relação ao que sente. A pessoa que tem problemas de saúde muitas vezes não prioriza tratar-se, por viver numa lógica de sobrevivência. Quando não se sabe o que se vai comer ou onde se vai dormir a noite, tosse, febre e mesmo dor, ficam em segundo plano.

Como você trabalha para estimular uma maior percepção nessa população em situação de rua?

A primeira coisa necessária é o olhar diferenciado para a população em situação de rua. Porque não podemos nos contentar apenas com as respostas que escutamos. A rua tem uma semiologia particular. Há casos de pacientes que quando perguntados se têm algum problema de saúde, respondem não. E aí, num segundo contato você observa que ele tem uma tosse crônica, uma hérnia, sinais e sintomas que não relatou porque nem percebia mais como anormais. Nós vamos tentando resgatar essa percepção aos poucos, para que a pessoa comece a entender que vive com um problema com o qual não precisaria viver e que tem a possibilidade de recorrer ao serviço de saúde.

E aí esbarra-se em outro problema que é a questão do acesso? Essa população de fato tem dificuldades de acessar os serviços públicos oferecidos?

Esse é um problema grave. Embora o acesso aos serviços públicos de saúde seja muitas vezes difícil para qualquer cidadão, no caso da população em situação de rua, há agravantes. Para se conseguir atendimento é preciso chegar muito cedo ao posto e esperar varias horas. O morador de rua com freqüência precisa sair para pegar o almoço, senão, so vai comer de noite. E a lógica da sobrevivência. Comida primeiro, médico depois. Em segundo lugar, é comum que o morador de rua esteja com roupas sujas e/ou não tenha tomado banho, o que faz com que ele seja mal recebido na sala de espera de um posto de saúde ou mesmo de um hospital. Muitas vezes ele é discriminado e sofre preconceitos de usuários e/ou funcionários dos serviços de saúde. A falta de documentação também apresenta-se como problema freqüente para o acesso do morador de Rua aos serviços públicos. O resultado final de tantas dificuldades é a busca por ajuda apenas em último caso. Assim, muitas questões de saúde tornam-se crônicas e por isso mais difíceis de resolver.

E como o projeto Meio-fio tem contribuído para facilitar esse acesso à saúde?

O projeto Meio-fio age em três frentes basicamente. Trabalhamos com instituições que lidam com população de rua, tentando sensibilizá-las e compartilhando informações sobre o trabalho com essa população. Trabalhamos nas ruas, ouvindo as demandas dos moradores e encaminhando-os para serviços com os quais tenhamos feito contato anterior. Não só instituições de saúde, mas também outras onde ele possa tirar documentos, tomar banho, cortar o cabelo, etc… Ele chega nesse local com um encaminhamento por escrito e com um resumo de sua historia . Isso facilita a abordagem do profissional que vai recebê-lo. A terceira frente é a sensibilização da sociedade, através de estratégias de comunicação, como por exemplo a exposição fotográfica que pode ser vista no site de MSF atualmente.

Você acredita que as questões da dificuldade de acesso e da percepção de saúde estão relacionadas a uma baixa auto-estima?

Com certeza. O morador de rua não se vê como cidadão. E não se vê como alguém que tem direitos. Muitas vezes eles nos agradecem muito pelo trabalho, e nós procuramos mostrar que não é favor, é um direito que eles têm. Acredito que haja uma desesperança crônica. Eles vão várias vezes num serviço, são mal atendidos, discriminados e muitas vezes acabam não retornando. Habituam-se a conviver com problemas de saúde, e os problemas acabam virando crônicos. Porque eles não têm mais esperança, não acreditam numa solução. Muitas vezes não acham nem que mereçam. E nós procuramos trabalhar isso, criando vínculo, ganhando confiança, e depois tentando mostrar a eles que há possibilidade de se cuidar e ser cuidado, buscar trabalho, uma vida diferente. Sempre respeitando o desejo de cada um. O projeto Meio-fio não deseja obrigar ninguém a mudar de vida. Deseja ser ponte, apontar caminhos possíveis, formar redes, ajudar a população de rua a resgatar sua cidadania.

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