“O sofrimento das pessoas está impulsionando o conflito armado na RCA”

Em entrevista, coordenador logístico de MSF conta sobre atuação da organização na RCA e situação do país em meio à violência

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Jean Philippe Garcia de la Rosa acaba de concluir sua participação como coordenador logístico de um projeto da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) na República Centro-Africana (RCA). Durante o ano de 2014, ele observou a evolução de um conflito que ganhou atenção no fim de 2013 com uma nova eclosão de confrontos violentos entre milícias adversárias. Este pequeno e esquecido país sofre com uma guerra intermitente e infindável que conduziu boa parte de sua população à pobreza e está mantendo centenas de milhares de pessoas longe de suas casas.

Após os pesados confrontos no início de 2014, a situação do país melhorou?
A RCA enfrenta as mesmas dificuldades que enfrentava há um ano, e as perspectivas não melhoraram. Não foram encontradas soluções para os problemas estruturais, como os antigos confrontos entre pastores e fazendeiros, e agora cada vez mais pessoas recorrem à violência para resolver suas questões.

O dia a dia das pessoas ainda é permeado por dificuldades. É só observar o aumento dos preços das mercadorias básicas. Os civis continuam sofrendo, e esse sofrimento está abastecendo o confronto armado. A angústia e o desespero sentidos por muitos jovens fizeram com que se juntassem a grupos armados. Muitos jovens muçulmanos que haviam deixado Bangui após as perseguições ocorridas há um ano vão acabar com armas em suas mãos.

A ampla presença internacional e a decisão das Nações Unidas de categorizar a crise na RCA como nível 3 – o mais elevado possível – são sinais claros de que a situação não melhorou significativamente.

Quais são os principais desafios sob o ponto de vista de logística em um contexto tão complexo?
Muitos problemas na RCA são, de alguma forma, os mesmos enfrentados em outros projetos de MSF, só que em nível superior. E muitos desses desafios estão interligados. No último ano, problemas relacionados com suprimentos aumentaram devido ao fechamento de algumas fronteiras e à dificuldade de se encontrar fornecedores locais. Um fator que complicou ainda mais as coisas foi a escassez de combustível, que piorou depois da chegada do novo contingente da ONU, que teve início em setembro. Isso ocasionou um aumento na demanda por combustível, na medida em que o suprimento permaneceu o mesmo, devido à capacidade limitada do fornecedor local.

Apesar de todos os obstáculos, nosso projeto pôde melhorar o sistema de suprimentos local por meio de um esforço conjunto de todas as nossas equipes. Conseguimos incrementar nossa performance nas áreas de higiene e saneamento das estruturas onde trabalhamos, que era nossa prioridade. O treinamento da nossa equipe foi essencial para responder aos desafios nesse sentido.

Como a contínua insegurança afetou o transporte de suprimentos e equipes?
O confronto armado em andamento afeta muito os deslocamentos por todo o território centro-africano. Temos que negociar continuamente com os vários grupos armados para facilitar o acesso nos pontos de controle, o que ficou ainda mais difícil no final do ano passado.

A instabilidade chegou ao ponto de nos forçar a interromper o transporte de suprimentos e pessoal por aviões devido à falta de segurança, o que, obviamente, afetou nossas atividades. Além disso, espera-se que haja ainda mais interrupção do abastecimento de combustível por conta da situação de segurança no país.

Houve progresso na reconstrução do país?
O país é pequeno, mas há muitas dificuldades para reconstrução. As milícias Seleka e anti-Balaka tentaram sem sucesso se tornarem grupos políticos. O insucesso se deu em parte por serem grupos muito heterogêneos, com diferentes facções já em sua origem, e também pelo fato de cada região e cada cidade terem seus próprios problemas e lideranças, o que dificulta muito o crescimento de grupos políticos a nível nacional.

De forma geral, a comunidade internacional está muito concentrada em Bangui e não tem dimensão do que acontece no restante do país. A intervenção poderia ter sido mais determinada desde o início, há um ano, o que talvez contribuísse para desencadear um conflito ainda mais difícil de controlar. Agora, a população local está questionando quem é responsável pela falta de soluções e pela insegurança contínua. E, por último, se você se posiciona contrário a uma das partes envolvidas no conflito, tem de fazer o mesmo com relação à outra, e a comunidade internacional não tem sabido administrar essa necessidade de equilíbrio.

O quão disseminado está o discurso da guerra religiosa na RCA?
O que observamos na RCA também pode ser visto em outros países em conflito: A população é a principal vítima do conflito. As pessoas têm de sobreviver com praticamente nada e acabam procurando um culpado. A resposta mais fácil é simplesmente culpar “os outros”, sejam estrangeiros ou alguém de outra religião. Há dois anos, após o golpe do Seleka – milícia majoritariamente formada por muçulmanos que lideraram um golpe de Estado em março de 2013 -, a ideia de que os vilões eram os muçulmanos cresceu rapidamente entre as comunidades cristãs. Então, o governo foi deposto e muitos muçulmanos tiveram que deixar Bangui, mas os problemas para os que ali permaneceram não desapareceram. As pessoas perceberam que não era uma questão de Seleka ou anti-Balaka (a milícia oponente), cristãos ou muçulmanos. Muitos se deram conta que o conflito não teve nada a ver com questões religiosas.

Qual deveria ser o objetivo da comunidade humanitária nesse cenário?
Precisamos concentrar esforços em levar ajuda às pessoas da melhor forma possível. Neste país, se você levantar uma pedra, imediatamente notará muitas necessidades não atendidas. Os problemas vão além do conflito, mas não podemos perder de vista nossas prioridades.

Sob o ponto de vista de MSF, acho que nosso trabalho é bastante reconhecido por todos os envolvidos. Um de nossos maiores diferenciais são nossos colegas locais, que também são parte da comunidade local, o que nos garante um melhor entendimento da realidade. Precisamos nos manter focados em chegar às pessoas onde quer que elas precisem de nós, para além das cidades, em qualquer lugar.
 

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