“Parece que ninguém se importa com o conflito no Sudão”

Em Histórias de MSF, Mohammed Bashir, médico da organização, fala sobre os impactos brutais da guerra no seu país, o Sudão

Mohammed Bashir, médico de MSF. ©Paula Casado Aguirregabiria/MSF

Você se lembra de mim? Meu nome é Mohammed Bashir, fui coordenador médico adjunto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Sudão. Em 2024, escrevi uma reflexão na qual compartilhei minha experiência na guerra civil não apenas como médico humanitário, mas como sudanês.

Ainda estou trabalhando com MSF, mas agora em um projeto no Sudão do Sul, do outro lado da fronteira de casa. Embora eu esteja fisicamente longe, os efeitos da guerra estão sempre presentes, me puxando de volta a cada atualização de notícias, pois comparo a devastação de que ouço falar com as manchetes das notícias globais que parecem mal notar.

O Sudão e o sofrimento de seu povo saíram da lista de prioridades do mundo. Esquecidos pela mídia, negligenciados pelo interesse político e ignorados por instituições doadoras de ajuda humanitária que deveriam colocar essa catástrofe no centro das atenções. Eu me pergunto: O que posso fazer como indivíduo? E minha decisão é evidente: continuarei a apoiar as pessoas esmagadas por essa guerra brutal.

Aqui no condado de Twic, no Sudão do Sul, muitos de nossos pacientes são sul-sudaneses que retornaram [do Sudão] e foram deslocados duas vezes em cerca de uma década. Milhares de refugiados sudaneses também cruzaram para diferentes partes do Sudão do Sul, espalhados em comunidades anfitriãs ou em acampamentos de refugiados superlotados.

Pessoas deslocadas no acampamento de Majook-noon, em Twic, Sudão do Sul. © Sean Sutton/Panos

Eu conheço essa dor

A guerra continua a nos atormentar e a separar famílias. As pessoas que fogem do Sudão compartilham as mesmas histórias de perda, incerteza e desesperança no retorno da paz. Eu conheço muito bem essa dor.

As fronteiras internas e as linhas de frente controladas pelos grupos em conflito arrasaram toda uma nação, dizimando vidas, casas e meios de subsistência.

 

Quanto às pessoas, nós estamos sozinhos

Minha família fugiu de Cartum, entre milhões de outras pessoas deslocadas, não uma, mas várias vezes em apenas 18 meses. Eles deixaram tudo para trás, sem um caminho claro para a sobrevivência e com pouca atenção do mundo. Ainda estamos sofrendo com o desaparecimento de um familiar meu, um civil levado de sua casa por um grupo armado há mais de 10 meses. Não temos notícias ou qualquer informação sobre seu estado de saúde ou se ele será libertado.

Mesmo para aqueles que escapam da violência ou se reúnem após a separação, surgem novos desafios, como enchentes e surtos de doenças, em um sistema de saúde em colapso. A maioria dos hospitais está destruída. E os que continuam funcionando estão abandonados sem medicamentos, equipe ou recursos. Essa é uma privação deliberada, uma tática cruel de guerra.

Leia também: Sudão: população no estado de Cartum é privada de serviços que salvam vidas

Sobrevivendo com o mínimo necessário, as pessoas ficaram à espera de um milagre, de mais deslocamentos ou, pior ainda, da morte.

 

Não desista

Apesar de tudo isso, estou aqui para compartilhar nossa resiliência. Como profissionais humanitários – médicos, logísticos e enfermeiros – fazemos tudo o que podemos para apoiar a população afetada pelo conflito. Cada pequena ação é importante, e todo esforço conta.

Isso é exatamente o que tenho feito nos últimos meses em Twic, como médico de referência do projeto de MSF no hospital do condado de Mayen Abun. A área já estava sobrecarregada por necessidades humanitárias, tendo testemunhado anteriormente o deslocamento interno de milhares de sul-sudaneses de seus lares devido à violência intercomunitária em Agok, em 2022. É um lugar onde o sistema de saúde entrou em colapso, sobrecarregado pela malária, hepatite E e desnutrição.

O trabalho aqui oferece uma janela para outra dimensão da guerra em meu país. Vejo em primeira mão as condições terríveis enfrentadas por aqueles que foram forçados a fugir do Sudão. O que me surpreende ainda mais é o fato de essa crise continuar sendo negligenciada. Há tão pouco conhecimento geral sobre o deslocamento de sudaneses para o Sudão do Sul, Chade e outros países, apesar das necessidades enormes das famílias que buscam refúgio.

Vivemos em uma época de crises crescentes, tanto de origem humana quanto natural. As vítimas das guerras atuais, em diferentes lugares e contextos, são quase trágicas demais para serem compreendidas.

Em meio a tudo isso, peço ao mundo: não deixem o Sudão escapar de sua atenção. Às vezes, parece que ninguém se importa, como se o Sudão tivesse sido deliberadamente deixado de ser uma prioridade para os tomadores de decisão globais, deixado de lado por outras crises. Por quanto tempo mais poderemos tolerar essa inação?

 

Sobre Mohammed Bashir

Mohammed Bashir trabalhou em vários projetos de Médicos Sem Fronteiras no Sudão, incluindo a supervisão de atividades médicas nos hospitais Umdawanban e Alban Aljadeed, apoiados por MSF, no estado de Cartum. Ele também desempenhou um papel fundamental na equipe médica do acampamento de refugiados de Um Rakuba, no estado de Al Gedaref, onde MSF realizou 40 mil consultas ambulatoriais em 2023. Além disso, suas responsabilidades incluíam o gerenciamento de emergências de saúde, como a resposta de MSF a um surto de cólera em 2023.

Atualmente, Bashir está trabalhando com MSF no estado de Warrap, no Sudão do Sul, onde nossas equipes estão fornecendo cuidados abrangentes em várias instalações no condado de Twic e na cidade de Abyei, além de apoiar locais de gerenciamento de saúde comunitária em acampamentos de pessoas deslocadas. MSF continua trabalhando com o Ministério da Saúde do Sudão do Sul para realizar atividades médicas cirúrgicas e de emergência na única instalação de saúde secundária na Área Administrativa Especial de Abyei.

Devido à violência intercomunitária em curso no Sudão do Sul e ao custo da guerra no Sudão, as equipes de MSF em Abyei e Twic estão lidando com um fluxo contínuo de cirurgias relacionadas à violência. De janeiro a junho de 2024, MSF forneceu 16.885 consultas de emergência e realizou 1.914 cirurgias. Desses, 815 pacientes precisaram de cuidados para traumas violentos, incluindo ferimentos por arma de fogo, explosões e esfaqueamentos. Apesar desses esforços, ainda há uma escassez significativa de atendimento hospitalar nessa região, além de capacidade cirúrgica e disponibilidade de salas de operação limitadas.

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