Profissionais de saúde de Gaza lutam com o impacto da guerra na saúde mental

Integrantes de equipes médicas afirmam viver sob medo constante, estresse e ansiedade enquanto continuam a tratar pacientes.

Profissional de saúde auxilia paciente no hospital Emirati, em Gaza. Janeiro de 2024. © Mariam Abu Dagga/MSF

Após mais de seis meses de uma guerra incessante, os profissionais de saúde de Gaza têm tido de enfrentar desafios sem precedentes para oferecer assistência médica a milhares de pessoas, ao mesmo tempo em que tentam sobreviver e lidar com o impacto que a guerra teve pessoalmente sobre eles. De acordo com profissionais de saúde mental de Médicos Sem Fronteiras (MSF), o impacto de trabalhar em condições tão extremas vai deixar cicatrizes por muitos anos.

Alguns profissionais de saúde na Faixa de Gaza, Territórios Palestinos Ocupados, afirmam viver sob medo constante, estresse e ansiedade enquanto continuam a tratar pacientes. Eles descreveram terem tido de atender diversas vezes um grande número de vítimas com membros esmagados e queimaduras de explosões, tendo que realizar amputações sem medicação suficiente para dor ou anestesia.

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Eles têm denunciado a escassez terrível de suprimentos médicos necessários para que possam salvar vidas, ocasionada pelo cerco total a Gaza imposto por Israel nos primeiros meses da guerra. Profissionais fugiram de hospitais que foram evacuados de maneira forçosa ou atacados por forças israelenses e tiveram de tomar a decisão impensável de deixar pacientes para trás para salvar as próprias vidas.

Em tempos de guerra, equipe médica sofre as consequências

A Dra. Audrey McMahon, psiquiatra de MSF que retornou recentemente dos Territórios Palestinos Ocupados, diz que a equipe médica em Gaza está trabalhando sob profunda tensão psicológica. “Muitas vezes, por causa dos bombardeios ou da insegurança, a equipe médica teve que deixar pacientes para trás. Muitos deles compartilham o sentimento de culpa por não conseguirem fazer mais”, diz McMahon. “Outras vezes, a culpa é por ter feito a escolha de proteger primeiro a família e não ir ao hospital para tratar os pacientes.”

Tenho esta obrigação moral de ajudar as pessoas ao meu redor e tenho esta outra obrigação de salvar meus filhos.”
– Ruba Suliman, médica de MSF.

Cerca de 300 profissionais palestinos de MSF estão em Gaza, incluindo a médica Ruba Suliman, que trabalha no Hospital de Campanha Indonésio, em Rafah. Ela foi deslocada da sua casa e vive num abrigo em Rafah, no sul de Gaza, com o marido e dois filhos. “Há um ruído constante de drones, que nunca nos abandona. Às vezes é muito difícil dormir”, diz a Dra. Suliman. “Tenho esta obrigação moral de ajudar as pessoas ao meu redor e tenho esta outra obrigação de salvar meus filhos.” “Estamos vivos, mas não estamos bem”, ela continua. “Nós estamos cansados. Todo mundo aqui está arrasado.”

Os profissionais de saúde em Gaza enfrentam as mesmas dificuldades que os outros 2,2 milhões de pessoas que vivem no enclave. Estes médicos, enfermeiros e socorristas também perderam as suas casas; alguns vivem em tendas e muitos dos seus amigos e familiares foram mortos.

“Não se trata apenas da casa em si (destruída na Cidade de Gaza), trata-se de perder todas as pequenas coisas que fizeram você ser quem você é”, diz outro médico palestino de MSF. “Minha xícara de café favorita, as fotos da minha mãe, os sapatos dos quais eu tanto gostava.”

O custo psicológico e o custo humano

A intensidade e a longa exposição a estes acontecimentos traumáticos estão abalando o estado psicológico de alguns palestinos em Gaza. Isto também inclui os profissionais de saúde, que dizem que vêm trabalhar para não pensar na guerra. Mas, mesmo assim, temem que o que veem acontecer aos seus pacientes aconteça com eles ou com seus entes queridos.

“Os profissionais da área médica continuam trabalhando apesar de seu estado emocional e das preocupações constantes com a segurança de suas famílias”, diz Gisela Silva Gonzàlez, coordenadora de atividades de saúde mental de MSF em Gaza. “Isso aumenta o nível de estresse no trabalho, que já é muito elevado neste contexto. O caso de cada paciente pode ser um gatilho emocional para os profissionais de saúde.”

Os profissionais de saúde mental de MSF em Gaza afirmam estar observando sintomas na equipe médica ligados a esse nível de estresse psicológico contínuo e exaustão. Há casos de ansiedade, insônia, depressão, pensamentos intrusivos, bloqueio emocional e pesadelos, os quais podem aumentar o risco de problemas de saúde mental.

Fotografia capturada dentro do hospital Nasser, atacado e sitiado pelas forças israelenses. Gaza, 13 de março de 2024. © MSF

MSF está tentando fornecer cuidados urgentes de saúde mental à equipe médica, embora ainda haja muito a ser implementado para ampliar esse apoio. Davide Musardo, coordenador de atividades de saúde mental de MSF em Gaza, diz que a abordagem de apoio à saúde mental para profissionais médicos é muito diferente da aplicada a pacientes, porque eles possuem mais consciência do impacto de seu trabalho.

“Para os nossos profissionais proporcionamos um tipo de atividade diferente, mais baseada na sua própria experiência”, afirma Musardo. “É sobretudo uma intervenção psicológica com a possibilidade de expressar a outros profissionais o que estão passando. Tentamos dar a eles um atendimento mais especializado através de muitas atividades de psicoeducação.”

Ofensiva iminente em Rafah aumenta o estresse

Um elemento essencial necessário para que seja possível oferecer apoio e tratamento psicológico é a segurança – e num ambiente onde nem mesmo os cuidadores estão seguros, é impossível construir resiliência e mecanismos de resposta. Ninguém e nenhum lugar estão seguros em Gaza. De acordo com as autoridades de saúde locais, desde 7 de outubro, mais de 34 mil pessoas foram mortas, incluindo 499 profissionais de saúde. Cinco dos nossos colegas de MSF estão entre eles.

“Quando dizemos que hoje não há lugar seguro em Gaza, não estamos falando apenas dos bombardeios”, diz Amparo Villasmil, psicóloga de MSF que trabalhou em Gaza em fevereiro e março. “Não existe nem um lugar seguro na mente das pessoas. Elas vivem em estado de alerta constante. Não conseguem dormir, acham que vão morrer a qualquer momento; que se adormecerem, não serão capazes de reagir rapidamente e fugir, ou proteger a sua família.”

Villasmil acrescenta que tanto os profissionais de saúde como a população civil estão assombrados e angustiados pela perspectiva de uma iminente ofensiva israelense em Rafah, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas estão amontoadas vivendo em condições terríveis.

“Certa vez, encontrei um colega – um psicólogo – na escada. Ele geralmente é uma pessoa com muita energia e otimista, mas estava com a cabeça apoiada nos joelhos. Estava à beira das lágrimas e me contou o quão exausto estava”, diz Villasmil, sobre seu colega que acabara de ouvir sobre a ofensiva contra Rafah. “Ele me perguntou o que deveria fazer, para onde deveria ir e quando esta guerra terminaria. Eu não tinha respostas para dar a ele.”

MSF reitera seu apelo por um cessar-fogo imediato e sustentado para evitar mais mortes e destruição nas vidas das pessoas em Gaza.

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