Profissional de MSF no Sudão relata tensão durante conflitos: “Paredes e janelas tremiam”

Camille Marquis, coordenadora de Advocacy de Médicos Sem Fronteiras (MSF), conta que se abrigou em um bunker para se proteger dos conflitos intensos.

Bunker de MSF em Cartum, no Sudão. Foto: Camille Marquis/MSF ‌

No sábado, 15 de abril, eu estava iniciando o que pensei que seria meu último dia em Cartum, quando ouvi os primeiros tiros do lado de fora, por volta das 8h30, enquanto tomava café da manhã. Minha bagagem estava pronta, minha geladeira e armários esvaziados, com apenas algumas horas de espera antes de ir ao aeroporto para voar para casa após passar um ano no Sudão.

 

 

Rapidamente, todos nós descemos para o bunker da nossa casa de hóspedes, no porão. Passei o dia lá sentada no chão com mais de 10 colegas, escutando tiroteios intensos, de aviões de guerra voando baixo e subsequentes explosões de ataques aéreos. O som ecoava na sala; paredes e pequenas janelas tremiam. O silêncio nunca durava muito tempo e muitas vezes foi seguido por uma explosão.

Naquela primeira noite, dormindo no chão cercada por meus colegas, enquanto eu deveria estar no aeroporto para voar de volta para casa, eu pensava nas pessoas presas no aeroporto, onde ocorrem intensos confrontos. Eu poderia ter sido uma delas. Algumas ficaram feridas e não conseguiram sair de lá para serem tratadas.

Estava também pensando em todos os meus colegas sudaneses e, de um modo mais geral, nas pessoas que vivem em Cartum e que, ao contrário de mim, não tiveram a oportunidade de dormir em um bunker com reservas de alimentos e água de emergência.

Agora*, é o sexto dia de conflitos nas ruas de Cartum, uma área densamente povoada com cerca de 10 milhões de habitantes. As pessoas estão ficando sem comida, água e combustível, assumindo grandes riscos para obter suprimentos em lojas que já estão enfrentando escassez.

Ouvindo toda a destruição do lado de fora, lendo sobre a perda de vidas, sobre os feridos e as pessoas que estão doentes e não podem chegar a um hospital ou clínica em funcionamento, mesmo na capital Cartum, fico extremamente triste pelo Sudão e por seu povo, preso em meio a conflitos entre as forças armadas de seu próprio país.

As pessoas estão lutando para obter comida, água, medicamentos, cuidados de saúde… e estes são apenas os primeiros dias. As consequências destes conflitos para as já elevadas necessidades humanitárias serão absolutamente dramáticas.

Durante um ano, tenho monitorado as necessidades humanitárias no Sudão e documentado o impacto da falta de resposta a essas necessidades na saúde e nutrição do povo sudanês, especialmente para as crianças. Havíamos acabado de divulgar uma nota informativa para alertar sobre as necessidades terríveis das populações que vivem no oeste de Darfur, pedindo aos atores humanitários e doadores que aumentem a resposta e apoiem o já em colapso sistema de saúde do Sudão.

Entre meus colegas atualmente abrigados em Cartum, dois profissionais de enfermagem deveriam voar para El Geneina, no oeste de Darfur, para trabalhar no hospital apoiado por MSF e tratar crianças com desnutrição grave. O psicólogo de MSF que trabalha no hospital de El Geneina também está preso em Cartum. Por causa do conflito, eles podem não ser capazes de voltar para lá tão cedo para fazer seu trabalho.

Equipes em Darfur Ocidental relatam um número baixo de pacientes nas enfermarias, provavelmente um sinal de que as pessoas estão com medo de deixar suas casas e ir ao hospital em um contexto de segurança tão instável. No ano passado, em El Geneina, o pico da desnutrição começou no início de maio, daqui a apenas dez dias.

Se os profissionais humanitários e de saúde não puderem continuar trabalhando com segurança – para fornecer assistência médica e nutricional, mas também assistência alimentar – e se os pacientes não conseguirem acessar a assistência e chegar a um hospital sem medo, milhões de crianças e outras pessoas com saúde vulnerável no Sudão enfrentarão o risco de graves consequências.

Um terço da população do Sudão já se encontrava  em situação de insegurança alimentar antes deste conflito que está em curso. E tudo nos leva a pensar que a situação tende a piorar em todo o país.

 

*Depoimento escrito em 20 de abril de 2023.

MSF  continua a fornecer cuidados médicos no Sudão sempre que possível. No entanto, muitos membros da equipe atualmente não podem se locomover devido a intensos conflitos na capital, Cartum, e em todo o país. A segurança de nossos profissionais e pacientes é nossa principal prioridade, e estamos apoiando os membros da equipe de acordo com suas circunstâncias específicas. Apelamos a todas as partes em conflito que garantam a segurança da equipe médica, dos pacientes e das instalações de saúde, e que permitam a passagem segura de ambulâncias, profissionais de saúde e humanitários e as pessoas que procuram cuidados de saúde. Nos últimos anos, tivemos projetos nos Estados de Cartum, Gedaref, Kassala, Nilo Azul, Nilo Branco, Darfur do Norte, Darfur Oriental, Darfur Ocidental, Darfur do Sul e Darfur Central, com equipes de emergência lançando atividades em outros estados, conforme necessário. 

 

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