Pronunciamento de MSF ao Conselho de Segurança da ONU sobre a situação humanitária no Sudão

Leia na íntegra o discurso de Christopher Lockyear, secretário-geral de Médicos Sem Fronteiras (MSF), pelo fim de ataques a civis e por aumento da ajuda humanitária

Senhora presidente, excelências, colegas,

Dois anos de violência implacável têm assolado o Sudão. Dois anos de devastação, deslocamento e morte.

Milhões de pessoas foram arrancadas de suas casas. Dezenas de milhares de mortos. A fome está sufocando a população.

Dois anos de sofrimento, acompanhados por dois anos de indiferença e inação.

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Senhora Presidente,

A guerra no Sudão é uma guerra contra a população – uma realidade que se torna mais evidente a cada dia.

As Forças de Apoio Rápido, as Forças Armadas Sudanesas e outras partes em conflito não estão apenas deixando de proteger os civis – estão ativamente agravando seu sofrimento.

As Forças Armadas Sudanesas têm bombardeado repetidamente e de forma indiscriminada áreas densamente povoadas. As Forças de Apoio Rápido e as milícias aliadas desencadearam uma campanha de brutalidade, marcada por violência sexual sistemática, sequestros, assassinatos em massa, saques de ajuda humanitária e ocupação de instalações médicas. Ambos os lados cercaram cidades, destruíram infraestruturas civis vitais e bloquearam a ajuda humanitária.

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Há seis semanas, eu estava no estado de Cartum. Cheguei ao Hospital al-Nao, apoiado por MSF, em Omdurman, logo após as Forças de Apoio Rápido terem bombardeado o Mercado Sabreen.

No hospital, havia um cenário de carnificina total: grupos de pacientes com ferimentos catastróficos ocupavam todos os cantos da sala de pronto-socorrro. Testemunhei as vidas de homens, mulheres e crianças sendo destruídas na minha frente. O Al-Nao é um dos poucos hospitais ainda em funcionamento na área e sofreu vários ataques nos últimos dois anos.

Naquela mesma semana, as Forças Armadas Sudanesas bombardearam uma fábrica de óleo de amendoim e bairros civis em Nyala, no sul de Darfur, sobrecarregando com vítimas o hospital apoiado por MSF.

Enquanto isso, as Forças de Apoio Rápido estavam entrando no acampamento de Zamzam, em Darfur do Norte, depois de meses de cerco e fome. O hospital de campanha apoiado por MSF no local, projetado para cuidados pediátricos e maternos – e não para traumas de guerra – recebeu 139 pacientes feridos antes que os ataques nos obrigassem a suspender todas as atividades, deixando para trás uma população sitiada e faminta.

Mas esses são apenas os exemplos mais recentes de como esta guerra está sendo travada.

Desde o início, a violência tem sido impiedosa. No oeste de Darfur, a violência atingiu níveis impensáveis, culminando em massacres que tiveram como alvo uma comunidade inteira, entre junho e dezembro de 2023.

Nossas equipes no Chade trataram mais de 800 pessoas feridas em apenas três dias, quando milhares de civis do povo Masalit fugiram de El Geneina depois que as Forças de Apoio Rápido tomaram a cidade. Os sobreviventes nos relataram como o simples fato de pertencer à comunidade Masalit havia se tornado uma sentença de morte.

Em Darfur do Sul, ao longo de 2024, nossas equipes prestaram atendimento a 385 sobreviventes de violência sexual. A maioria – inclusive algumas com menos de 5 anos de idade – sofreu estupro, muitas vezes por homens armados. Quase metade foi agredida enquanto trabalhava nos campos. Mulheres e meninas não estão apenas desprotegidas; elas estão sendo brutalmente atacadas.

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Senhora Presidente,

MSF está operando programas médicos em mais de 22 hospitais e 42 instalações de saúde primária em 11 dos 18 estados do Sudão. Em Cartum, Kordofan do Sul, Darfur e Gedaref – na maioria de nossos projetos – a desnutrição grave está em níveis críticos. Nossos centros de nutrição terapêutica foram sobrecarregados além de sua capacidade. Ao mesmo tempo, estamos observando um aumento nas doenças evitáveis por vacinação, incluindo sarampo, cólera e difteria.

A violência contra civis está impulsionando as necessidades humanitárias. Isso não é um mero subproduto do conflito – é fundamental para a forma como esta guerra está sendo travada em todo o Sudão, uma guerra que está sendo ainda mais alimentada do lado de fora.

Seus impactos devastadores são agravados pelas restrições ao acesso humanitário, sejam elas impostas deliberadamente ou resultado de paralisia burocrática, insegurança ou colapso da governança e da coordenação.

Temos visto algum progresso em algumas frentes: acesso transfronteiriço a Darfur por meio de Adre; melhor processamento de vistos para equipes internacionais; a abertura de pistas de pouso específicas para voos humanitários em Dongola e Kassala.

No entanto, os ganhos permanecem insignificantes em comparação com a escala esmagadora de necessidades.

Apesar da evidente urgência da situação, a prestação de assistência humanitária no Sudão continua sendo extremamente e, em alguns casos, deliberadamente complexa.

A obtenção de permissões de viagem continua sendo um desafio, o acesso exige negociações exaustivas e, apesar dos acordos anteriores, os centros humanitários vitais da ONU em Darfur continuam bloqueados.

Nas áreas controladas pelas Forças de Apoio Rápido, o grupo armado e suas afiliadas atrasaram arbitrariamente os comboios de ajuda – às vezes por semanas – e impuseram pedágios e impostos injustificáveis. O transporte de uma remessa de 60 toneladas de assistência humanitária de N’Djamena, no Chade, para Tawila, em Darfur do Norte, custa incríveis 18 mil dólares (104.625 reais, na cotação atual), mais de um terço dos quais deve ser pago na estrada. Por meio da Sudanese Agency for Relief and Humanitarian Operations (SARHO), as Forças de Apoio Rápido estão impondo obstáculos burocráticos incapacitantes.

As organizações de ajuda humanitária que tentam fornecer ajuda nas áreas controladas pelas Forças de Apoio Rápido enfrentam uma escolha impossível: atender às exigências da SARHO para formalizar sua presença e correr o risco de serem expulsas pelas autoridades de Porto Sudão ou recusar e ter suas operações encerradas pela SARHO. De qualquer forma, a assistência que salva vidas está em jogo.

As afirmações de soberania não podem continuar a ser usadas como arma para restringir o fluxo de ajuda.

A ajuda e as agências de assistência não podem continuar a ser exploradas para obter legitimidade.

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Senhora Presidente,

Apesar da coragem e dedicação dos trabalhadores humanitários locais e internacionais, a resposta permanece inadequada. O sistema está atolado no pensamento tático, negociando infinitamente pequenas exceções, quando deveria estar conduzindo uma resposta que realmente atenda o tamanho da crise.

Considere a passagem de Adre — aberta para suprimentos humanitários transfronteiriços por seis meses, mas apenas cerca de 1.100 caminhões chegaram a Darfur [no Sudão] — uma média de apenas seis por dia, para toda a região de Darfur. Em nossa estimativa, 13 caminhões por dia são necessários para atender às necessidades nutricionais somente no acampamento de Zamzam.

Outro exemplo é a ponte Mornei, uma passagem vital para a ajuda humanitária que se desloca de Darfur Ocidental para Darfur Central e do Sul. Ela desabou em agosto de 2024. Depois de 217 dias, continua sem reparos, dificultando o acesso de milhões de pessoas à assistência.

Como é possível que obstáculos tão fundamentais à ajuda humanitária permaneçam sem solução?

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Senhora presidente,

Este Conselho tem repetidamente apelado pelo fim do conflito, pela adesão ao direito internacional humanitário, pela proteção de civis e pela entrega de ajuda humanitária sem impedimentos.

No entanto, os seus apelos soam vazios.

Enquanto as declarações são feitas nesta câmara, os civis permanecem invisíveis, desprotegidos, bombardeados, sitiados, violados, deslocados, privados de alimentos, de cuidados médicos, de dignidade.

A resposta humanitária vacila, paralisada pela burocracia, pela insegurança, pela hesitação e pelo que ameaça se tornar o maior desinvestimento em ajuda humanitária da história.

Para os meus colegas em Cartum, em Tawila, em Nyala – para os nossos pacientes em todo o Sudão – o fracasso deste Conselho em traduzir as suas próprias exigências em ação parece um abandono à violência e à privação.

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Senhora presidente,

A Declaração de Compromisso de Jeddah para Proteger os Civis do Sudão, que este Conselho invoca frequentemente, deveria ter sido um momento decisivo.

No entanto, sem monitoramento, sem responsabilização e sem liderança, o acordo se tornou pouco mais do que um escudo retórico conveniente — invocado para sinalizar preocupação enquanto absolve de tomar reais medidas aqueles que têm responsabilidade e influência.

O que é necessário hoje é um novo pacto — um pacto fundado em um compromisso compartilhado com a proteção civil. Um pacto que garanta às organizações de ajuda humanitária o espaço operacional de que precisam, que imponha uma moratória sobre todas as restrições à assistência humanitária e que garanta que a resposta permaneça independente de interferência política. Ele deve substituir o atual sistema de controle de acesso por um que defenda a sobrevivência e a dignidade do povo sudanês.

Tal pacto requer tanto a vontade política quanto a liderança capaz de alinhar as partes em conflito com os imperativos humanitários. Ele deve ser monitorado de forma independente e sustentado por um mecanismo de responsabilização robusto que garanta que todas as partes no conflito sejam responsabilizadas por seus compromissos.

No entanto, mesmo o acordo mais forte fracassará sem o envolvimento total dos doadores e uma abordagem mais proativa do Secretariado da ONU. Para os Estados-membros: a resposta deve ser reforçada por um financiamento ampliado e sustentado. Ao Secretário-Geral da ONU: a redistribuição total das agências humanitárias da ONU deve ser mandatória em Darfur e em todo o Sudão.

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Senhora Presidente,

A estação chuvosa se aproxima. A lacuna da fome aumentará.

A crise no Sudão exige uma mudança fundamental das abordagens fracassadas do passado. Milhões de vidas dependem disso.

 

 

 

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