Prostituição desafia esforços de combate à Aids no Camboja

No país, profissionais do sexo ganham mais na semana que médicos no mês

Em um país bastante conhecido por problemas com o tráfico de seres humanos e a exploração sexual como o Camboja, não é de se estranhar que uma das populações mais afetadas pelo HIV/Aids (que tem seu Dia Mundial de Combate celebrado nesta segunda-feira) seja a dos profissionais do sexo. Segundo a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), 2,7% deles são soropositivos. Em Siem Riep, cidade onde está o famoso templo Angkor Wat, principal ponto turistico do país, dados colhidos pela ONG apontam que 30 mil mulheres, dos 300 mil habitantes da cidade, trabalham com prostituicão — ou seja, 10% da população.

Em geral, a maioria dos indivíduos que entram para a prostituição são mulheres com idades entre 20 e 27 anos, vindas do interior do país e que vêem na profissão uma chance de ganhar um bom dinheiro. Mas há rapazes também.

"No Camboja, um médico do Ministério da Saúde ganha US$ 100 por mês e um enfermeiro, US$ 50. O valor mínimo cobrado por um profissional do sexo é US$ 10, o que não é nada para um turista que paga uma viagem cara até a Ásia, e eles costumam atender até cinco clientes por noite. Ou seja, facilmente ganham mais do que profissionais que estudaram", explica a enfermeira gaúcha Ana Lucia Bueno, que desde abril trabalha no país e é responsavel pelas atividades de prevenção desenvolvidas pela Médicos Sem Fronteiras para profissionais do sexo.

O trabalho na prostituição, no entanto, tem prazo de validade curto. "Como os homens geralmente gostam de meninas jovens, com olhar baixo e submissas, dificilmente você encontra profissionais com mais de 30 anos. Enquanto trabalham, elas economizam para montar lojinhas ou negócios próprios quando tiverem que parar de trabalhar", conta a brasileira.

Em uma tentativa de coibir a exploração sexual, o governo do Camboja decretou em janeiro deste ano uma nova lei que tornou a prostituição um crime. No entanto, a medida não teve o efeito desejado. Com o fechamento dos bordéis, as prostitutas passaram a trabalhar nas ruas, karaokês, casas de massagem e até mesmo em restaurantes. "São locais de prostituição indireta, onde as meninas trabalham e, se algum cliente fizer alguma proposta, elas podem aceitar."

A máquina da prostituição é grande e não pára. "A maioria dos karaokês funciona 24 horas por dia, de domingo a domingo. As meninas se apresentam no palco e cada uma atende por um número, facilitando a escolha do cliente. Já nos restaurantes, os donos fazem um acordo com as meninas. Eles precisam de pessoas para servir as mesas, mas não querem pagar salário. Então elas trabalham de graça, mas se tiverem clientes, ficam com o todo dinheiro do programa para elas", explica a brasileira.

A nova lei teve também um efeito colateral para o controle do HIV/Aids. Como a prostituição agora é crime, tornou-se mais difícil identificar e localizar os profissionais. "É aquela velha história, ninguém diz que vai ao karaokê, mas todo mundo freqüenta", afirma Ana Lucia.

Em colaboração com as ONGs locais, a MSF desenvolveu um programa de tratamento e prevenção de HIV/Aids para essa população, que inclui desde de atividades informativas até distribuição gratuita de preservativos, algo que não é feito pelo governo. "Nós vamos aos karokês para falar com as meninas sobre doenças sexualmente transmissíveis e a desinformação é enorme. O nível de educação é muito baixo e muitas delas não sabem nem sequer ler", ressalta a brasileira.

A situação não é muito diferente entre os donos dos chamados "estabelecimentos de entretenimento adulto". "Lembro que uma vez fui fazer uma apresentação e o dono do karaokê, um homem muito bem vestido e aparentemente abastado, não sabia nem o que era sífilis", lembra Ana Lucia.

Apesar das ONGs facilitarem o acesso ao tratamento, muitas das profissionais não procuram ajuda e, quando o fazem, não conseguem seguir o tratamento de maneira regular. "As profissionais do sexo são pacientes mais difíceis de se trabalhar. Como têm um salário irregular, freqüentemente falta dinheiro para vir à clínica. Elas também costumam se mudar muito. A grande maioria quer esconder sua soropositividade e procura tratamento em outras cidades, para não ficarem estigmatizadas", conta a cambojana Heang Chungleng, que há quatro anos trabalha como conselheira no programa da MSF em Siem Riep.

Um novo fenômeno também tem tornado o controle da Aids mais difícil: os sweethearts (ou namorados, em português). "Muitas meninas usam preservativo com os clientes, mas não fazem isso com seus namorados e acabam contaminadas, porque eles não são totalmente fiéis", diz Heang.

Se os desafios são grandes, ao menos o governo tem dados sinais, ainda que tímidos, de que está mais aberto a discutir a questão. "Ainda não há uma política específica para as profissionais do sexo, nem para a prevenção de HIV/Aids no Camboja. Mas muitas ONGs locais têm feito pressão porque o problema tomou proporções difíceis de serem ignoradas. A gente espera que, em breve, seja desenvolvida uma diretriz mais clara para abordar a situação", afirma Ana Lucia.

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