Psicologia na Síria: “Lembranças, pesadelos e enxoval de bebê”

Psicóloga conta como a guerra está afetando a saúde mental das pessoas

A psicóloga de Médicos Sem Fronteiras (MSF), Audrey Magis, que estruturou e administrou o funcionamento de um programa de saúde mental em um dos projetos da organização no norte da Síria, explica como a guerra afetou as pessoas e o que MSF está fazendo para ajudá-las. O depoimento de Audrey foi o ponto de partida para uma ampla reportagem sobre os impactos da guerra na saúde mental dos sírios, publicada esta semana na Globo A Mais, revista para Ipad do jornal O Globo.

“Na maioria dos lugares onde trabalhei, as pessoas ficam hesitantes quando digo que sou psicóloga. Mas na Síria, aconteceu o contrário: as pessoas me procuravam, dizendo que precisavam de meus serviços. A guerra já tem dois anos e as pessoas perderam completamente suas referências.

No início, elas me falavam sobre seus problemas em casa: crianças que não estão frequentando a escola e, por isso, estão ficando perturbadas; adultos que não estão trabalhando.  Quando você vai um pouco mais fundo, rapidamente descobre que a maioria vivenciou experiências profundamente traumáticas. Alguns perderam amigos ou familiares, outros tiveram suas casas destruídas ou sobreviveram a bombardeios. As pessoas vivem em tendas e, muitas vezes,  dez pessoas ocupam o mesmo cômodos.

As pessoas perderam sua identidade. Homens mais velhos não conseguem encontrar seu papel na sociedade e na família. Eles perderam seus empregos ou são ex-combatentes da guerra. Eu não preciso ir atrás dessas pessoas. Elas pedem ajuda dizendo coisas como: ‘Estou começando a ser violento com minha esposa e filhos. Por favor, me ajude. Não posso ser assim’.

Tenho visto muitas mulheres com imensa dificuldade de estabelecer um vínculo com seus filhos. Há poucos contraceptivos disponíveis e muitas mulheres estão engravidando sem querer. Elas esforçam-se para imaginar seu futuro com a criança, mas é difícil. Atendi diversas mulheres no período terminal da gestação que não haviam preparado nada. Nem berço, nem roupas, nem nome. As pessoas perderam a capacidade de projetar o futuro de suas vidas.

Todas as crianças brincam em meio à guerra. Você não as vê brincando com carros ou participando de jogos normais; elas brincam de atirar umas nas outras. Eu vi crianças atirando pedras em burros, machucando animais. Essa é a forma que elas encontram de expressar a raiva contida. Na realidade, essa é uma maneira relativamente funcional para liberarem parte de sua agressividade.

Também vi homens em seus vinte e poucos anos, ex-combatentes que vieram até mim reclamando de depressão, estresse traumático, flash backs, pesadelos.

Diversas pessoas me disseram que não sabem mais do que se trata essa guerra. Estão aterrorizados com a ideia de estarem lutando contra vizinhos, amigos, e não sabem mais a razão disso tudo. No início, parecia haver algum propósito, mas dois anos depois, já não resta mais nada. Elas apenas querem que tudo acabe para que possam voltar às suas casas.

As coisas passaram em muito dos limites. As pessoas estão no piloto automático. Mas, de alguma forma, conseguem suportar. Não podem se permitir desmoronar. Elas desenvolveram uma incrível habilidade de adaptação para continuar seguindo com suas vidas.  Sobreviver a dois anos disso tudo já é impressionante. O apoio da família e da comunidade é enorme.

Por vezes, uma só sessão já basta. Algumas pessoas precisam apenas ouvir que o que as está acontecendo é normal, que não estão ficando loucas. Mas há pacientes com quem tive que trabalhar por mais tempo. A proposta é estabelecer um objetivo claro e chegar até ele passo a passo, utilizando a terapia comportamental. Não há tempo para sessões de análise longas, mas é possível realizar um bom trabalho psicológico com técnicas de terapia de curto prazo.

Lembro-me de uma paciente, uma mulher que estava no sexto mês de gestação. Ela veio ao hospital pedindo para realizar um parto prematuro. Não havia motivos médicos. Ela apenas queria que fizéssemos uma cesárea para ter o filho o quanto antes. Ela estava muito ansiosa, muito agitada.

Conversei com ela, disse que aquela seria uma das muitas crianças nascidas em meio à guerra e ela falou que sentia que o bebê lhe sugava toda a energia. Tudo o que ela queria era tomar antidepressivos, mas a gravidez a impedia.

Trabalhamos em um planejamento de exercícios de relaxamento e fizemos um diário, no qual ela poderia escrever sempre que se sentisse tensa, descrevendo o que tinha acontecido para causar aquela tensão. Algumas sessões depois, demos um passo à frente, fazendo preparativos para a chegada do bebê.

Durante nossa última sessão, ela me mostrou as roupas do bebê que estava para nascer. Ela ainda não havia escolhido um nome, mas tinha feito grandes avanços e estava pronta. Ela foi minha última paciente da minha última sessão do meu último dia. Deixei o projeto com a sensação de que meu tempo foi extremamente bem investido.”

Anteriormente, Audrey trabalhou com MSF em Gaza, na Líbia e em um campo de refugiados sírios.

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