RCA: retrospectiva de um ano de novas violências em um antigo conflito

Em 2021, onda de conflitos em meio a disputas políticas causou altos níveis de deslocamento e dificultou gravemente o acesso à saúde no país

Foto:Adrienne Surprenant/Collectif Item for MSF /2021

No final de 2020, a violência atingiu mais uma vez a República Centro-Africana (RCA), um país que passou por décadas de conflitos intermitentes. Relembramos o trabalho feito pelas equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em 2021, que apoiaram pessoas vulneráveis em necessidade de assistência, fornecendo cuidados de saúde essenciais, muitas vezes em difíceis situações.

 

Pessoas deslocadas de suas casas por conflitos, dentro e fora das fronteiras da RCA

Foto: Dale Koninckx/MSF/2021

 

As pessoas chegam ao vilarejo de Ndu, na República Democrática do Congo (RDC), depois de atravessar o rio Mbomou, da República Centro-Africana. Em meio a eleições contestadas em dezembro de 2020, uma coalizão recém-formada de grupos armados não estatais chamada Coalizão de Patriotas pela Mudança (em francês: Coalition des patriotes pour le changement, CPC) lançou uma ofensiva contra o governo da RCA.

Bangassou foi um dos lugares atingidos pela violência. Em 3 de janeiro, centenas de pessoas buscaram refúgio no hospital apoiado por MSF, e mais de 10 mil pessoas fugiram para Ndu, na RDC. MSF apoiou pessoas em Bangassou e Ndu fornecendo abrigo, alimentação e assistência médica.

A cidade de Bouar também foi atingida pela violência. A CPC atacou posições das Forças Armadas Centro-africanas (FACA) e da Missão de Manutenção da Paz da ONU (MINUSCA) na cidade. Mais de 8 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Quase metade delas ficou na antiga catedral da região. “É um desamparo total”, relatou um membro da equipe de MSF. “As condições de vida nos locais que hospedam os deslocados são deploráveis, principalmente devido à falta de água potável”.

 

A jornada de um paciente ferido

Foto: Adrienne Surprenant/2021

 

Nas primeiras semanas da nova onda de violência, os conflitos foram particularmente intensos. Em apenas um mês, as equipes de MSF trataram 258 pessoas feridas pela violência em todo o país. France Beldo, de 31 anos, foi atingida por uma bala perdida no terraço de sua casa em 13 de janeiro, em Bangui, quando a CPC chegou aos arredores da capital. Ela foi levada para o hospital SICA, uma unidade de trauma cirúrgico administrada por MSF. A bala penetrou em sua mão, peito e ombro, mas não danificou nenhum órgão vital.

Em 22 de janeiro, France recebeu alta do hospital, um dia depois de o governo anunciar estado de emergência de 15 dias em todo o país. “Estava me perguntando se sobreviveria ou não”, disse France. “Foi só quando cheguei aqui que os médicos me disseram: ‘Vai ficar tudo bem’. Posso ver agora que o trabalho deles me curou. As pessoas estão cheias de preocupação. Eu gostaria que os conflitos parassem para que o país pudesse ficar sossegado”.

Nem todos os feridos tiveram a mesma sorte que France. No final de dezembro de 2020, perdemos um colega; a equipe médica estava de folga e pegou um caminhão de transporte público no caminho de Bambari para Bangui, quando os tiros começaram repentinamente. Ele foi transferido para Grimari para tratamento, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu pouco depois.

 

Violência sexual, um problema de saúde pública agravado pelos conflitos

Foto: Adrienne Surprenant/ 2020

 

“Depois da agressão, pensei em tirar minha própria vida”, diz Charlotte (nome alterado para proteger a identidade), uma sobrevivente de violência sexual de 18 anos de Bangui. Depois que sua mãe morreu e seu pai a rejeitou, Charlotte foi morar com seus tios. Um dia, quando a casa estava vazia, a jovem foi vítima de violência sexual pelo seu tio. Sua tia se recusou a acreditar nela, e Charlotte se sentiu completamente sozinha e desesperada. Ela denunciou o caso à polícia, mas nenhuma ação foi tomada. A jovem buscou apoio no centro de MSF em Tongolo, onde 9 mil sobreviventes de violência sexual receberam atendimento médico, psicológico e psicossocial desde 2017.

A violência sexual tornou-se um problema de saúde pública na RCA, agravado em períodos de conflito. A equipe de MSF em Tongolo relata que os perpetradores geralmente são conhecidos de suas vítimas, sejam amigos, vizinhos ou parentes. Com a retomada dos conflitos no início de 2021, sobreviventes em áreas afetadas pela violência identificaram homens armados como os perpetradores mais comuns de violência sexual.

 

Necessidades médicas de emergência em todo o país

Foto: Seigneur Yves Wilikoesse /2021

 

“Estou doente desde que fugimos para o mato”, disse, em abril, Thérèse, uma mulher deslocada de sua casa e abrigada em Grimari. “Sinto frio o tempo todo e tenho dores por todo o corpo. Eu vomito constantemente e tenho diarreia”. Durante semanas, ela não conseguiu se consultar com um médico, em vez disso, tratou-se com medicamentos e plantas tradicionais.

Com os conflitos afetando fortemente o acesso das pessoas à saúde, MSF enviou equipes de emergência a várias regiões do país para ajudar as pessoas afetadas pela violência. As equipes administraram clínicas móveis em unidades de saúde existentes, escolas e acampamentos para deslocados. Em Grimari, Bossembelé e Ippy, foram realizadas mais de 5 mil consultas médicas entre dezembro e abril, com foco em atendimentos emergenciais, crianças menores de cinco anos e gestantes. A maioria dos pacientes foi tratada para malária, uma das principais causas de morte da CAR.

 

Volatilidade nas áreas rurais

Foto: Igor Barbero/MSF/2021

 

Após a ofensiva inicial da oposição armada, o governo e as forças aliadas gradualmente recuperaram o controle das principais cidades e vilas da RCA, forçando grupos armados não-estatais a se esconderem. A situação tornou-se muito volátil em várias áreas rurais do país, com frequentes conflitos e ataques às populações locais.

No final de maio, Tanguina Chela fugiu do vilarejo de Gmganga, perto da cidade de Kabo, junto com seu marido e três filhos. A maioria dos 200 habitantes de Gmganga partiu devido a temores de uma possível retaliação contra as comunidades locais acusadas de colaborar com as forças do governo.

“Deixei tudo o que tinha lá”, disse Tanguina, em junho, quando estava em Kabo. Esta foi a terceira vez que ela foi deslocada de sua casa. “Ao longo da minha vida, sofri muito”, disse. “Desde que eu tinha sete anos, a mesma história sempre se repetiu. Estou me mudando há muito tempo devido à guerra. Perdi meus pertences, minhas terras agrícolas, tudo… Tenho filhos, mas nem sei como vou alimentá-los”. Tanguina é uma das 1,4 milhão de pessoas centro-africanas atualmente deslocadas de suas casas, o que representa quase 1/3 da população do país.

 

Ataques repetidos aos serviços médicos

Foto: Lys Arango/2021

 

Os conflitos afetaram gravemente a prestação de cuidados médicos. No primeiro semestre de 2021, equipes de MSF se depararam com dezenas de unidades de saúde saqueadas, danificadas e ocupadas por homens armados. As incursões armadas em hospitais expuseram os pacientes à violência, abuso físico, interrogatório e prisão. Agentes comunitários de saúde em áreas rurais foram ameaçados e agredidos. Motociclistas que entregavam medicamentos vitais e transportavam pacientes doentes para hospitais foram atacados e roubados à mão armada. Alguns deles foram feridos e até mortos.

Como resultado desses incidentes, em várias ocasiões, MSF teve que suspender temporariamente suas atividades médicas, incluindo o fornecimento de cuidados vitais, supervisão da equipe do centro de saúde, fornecimento de medicamentos e transporte de pacientes. “Ser forçada a suspender nossas atividades apenas intensifica a vulnerabilidade das pessoas e resulta em mortes evitáveis de crianças e mulheres com complicações na gravidez e no parto, entre outros”, disse Gisa Kohler, coordenadora-adjunta de programas de MSF, em julho.

 

Acampamentos para deslocados expostos à violência

Foto: Lys Arango/2021

 

Bambari foi um lugar repetidamente afetado pela violência. Após confrontos no início de junho, cerca de 8.500 pessoas foram expulsas do campo improvisado de Elevage, nos arredores da cidade, que foi incendiado. Um ponto de tratamento para malária administrado por MSF no local também foi destruído. A maioria dos moradores buscou refúgio, inicialmente, no complexo de uma mesquita na cidade de Bambari, onde as pessoas viveram em condições difíceis por meses.

A família de Youmousa sofreu anos de conflitos e foi deslocada de sua casa várias vezes. A destruição do acampamento Elevage foi muito para a mãe de Youmusa suportar. “Ela não conseguiu lidar com mais uma mudança”, disse Youmousa, em agosto. “Depois que fomos expulsos do Elevage, ela se recusou a comer, não dormia e quase não falava. Ela faleceu na semana passada, e nós a enterramos no cemitério de Bambari, muito longe de sua cidade natal”.

 

Retornando a um centro de saúde em desordem

Foto: MSF/2021

 

Quando a equipe de MSF entrou no vilarejo de Nzacko, em julho, os profissionais encontraram uma série de construções em ruínas cobertas por vegetação, carros queimados e mercados e lojas abandonados. Desde janeiro, a maioria dos habitantes fugiu do vilarejo, vivendo em condições muito precárias, sem acesso à assistência humanitária por causa da insegurança. Quando os conflitos finalmente terminaram, a população retornou gradualmente.

“Quando chegamos, encontramos o centro de saúde em ruínas”, disse o enfermeiro de MSF Pelé Kotho-Gawe. “Enquanto isso, a malária e a desnutrição afetaram as pessoas que estavam se abrigando na floresta”.

Octavia Braza, de 33 anos, estava prestes a dar à luz seu sétimo filho. Ela não havia comido o dia todo porque não havia mais comida depois de ter alimentado seus filhos. Nos últimos meses, houve um aumento acentuado da mortalidade materna na área. Felizmente para Octavia, a chegada da equipe de MSF com suprimentos a ajudou a evitar complicações e dar à luz com segurança. Após cinco horas de trabalho de parto, o bebê nasceu.

 

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