RDC: “Não existe saúde sem saúde mental”

Profissionais de MSF na RDC estão vivendo o mesmo trauma de seus pacientes

RDC: “Não existe saúde sem saúde mental”

Na beira de um matagal de árvores de eucalipto, uma peça de teatro é realizada. Trata-se de uma tragédia familiar, com um elenco identificável: um pai alcoólatra e abusivo, uma esposa dedicada e uma filha que está quase se tornando mulher.
A parte atípica dessa representação teatral são os atores. “Quando você é deslocado de sua casa, seus pensamentos são deslocados também”, diz Sifa Clementine. Sifa supervisiona as atividades de saúde mental conduzidas por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mweso, uma cidade pequena no leste da República Democrática do Congo (RDC).

Hoje, Sifa e sua equipe estão fazendo uma peça de teatro sobre violência sexual para a comunidade local. O cenário é o campo de deslocados internos que se estende pela estrada que leva ao Hospital Geral de Mweso, onde Sifa e sua equipe trabalha. Os atores da peça são todos conselheiros de saúde mental de MSF.

Durante as três horas seguintes, a equipe se conecta com a audiência de 200 pessoas por meio de músicas, dança e dramatização.

Ao fim da peça, há um momento de reflexão para que audiência pense no que acabou de assistir, como forma de debate em grupo

O evento é planejado para informar às pessoas do acampamento que MSF está na comunidade e que está ali para ouvi-las.

“Quando vemos um problema na comunidade, atuamos sobre esse problema e informamos a população dessa maneira”.

“Muitas vezes, o comportamento de uma pessoa é afetado por aquilo pelo qual ela passou. É quando comportamentos mudam”.

Em referência ao personagem da filha na peça, Sifa explica: “Em seu vilarejo, por exemplo, ela não bebia álcool, mas agora bebe. Ela rouba alimento de casa e vende para comprar bebida”.

“Essas esquetes mostram às pessoas o que pode acontecer e como elas podem superar esses problemas”.

Saúde mental em Mweso

O trabalho de saúde mental feito por MSF em Mweso começou em 2009, ajudando comunidades locais e a pessoas deslocadas por conflitos.

A região de Kivu do Norte, que faz fronteira com Ruanda e Uganda e que abriga o Parque Nacional de Virunga, está em estado constante de alerta desde a crise da Região dos Grandes Lagos, que começou após o genocídio de Ruanda, em meados de 1990.

Segundo maior país do continente africano em termos de área, a RDC é um Estado frágil e afetado por um conflito que recebe mais ajuda de MSF que qualquer outro país em que trabalhamos.

A equipe de conselheiros psicossociais supervisionada por Sifa é proveniente das comunidades nos arredores de Mweso.
Esses profissionais se conectam com seus pacientes usando a empatia e também criando um ambiente seguro em que eles consigam trabalhar os traumas que vivenciaram.

Vinda das mesmas comunidades de seus pacientes, a equipe de Mweso entende muito bem os tabus sociais em torno da saúde mental, assim como os eventos traumáticos a que as pessoas são submetidas praticamente todos os dias.
Conflitos, roubos a mão armada e casos de violência doméstica e sexual são apenas algumas das questões enfrentadas pela população em Kivu do Norte.

O teatro é uma das muitas intervenções que a equipe realiza. Junto com atividades psicológicas e educacionais como essa, a equipe de saúde mental de Mweso também oferece aconselhamento terapêutico para questões ligadas a traumas, como violência sexual, primeiros socorros psicológicos, apoio psicossocial para nutrição, sessões individuais de aconselhamento e grupos de apoio para pessoas que vivem com condições como HIV, TB e diabetes, além de encaminhamentos para cuidados psiquiátricos, quando necessário.

“Eu estava sempre preocupado e ocasionalmente ainda tenho flashbacks”, diz Imani Stanley. Ele começou sua carreira em MSF no ano de 2008, como vigia em nosso projeto em Kitchanga, a uma hora de distância de carro ao sul de Mweso.
Sua inteligência e iniciativa fizeram com que ele progredisse rapidamente para ser um conselheiro – ele estudou psicologia na universidade de Goma e fala seis idiomas, entre eles inglês, francês e quatro dialetos locais. Recentemente ele foi promovido a assistente administrativo.

Em 2013, Stanley testemunhou os horrores a que muitas pessoas em Kivu do Norte já se acostumaram. Em fevereiro daquele ano, o conflito chegou a Kitchanga.

“Eu estava trabalhando em Mweso na época, mas minha família vivia em Kitchanga. Tínhamos duas casas, uma para mim, minha esposa e meus filhos e uma para minha mãe”, diz Stanley.

“Felizmente, a maioria da minha família havia fugido antes do conflito, mas cinco parentes não tiveram tanta sorte. Perdi três primos e duas cunhadas. Minha casa e a de minha mãe foram completamente destruídas. Tudo que investimos em nossa família desapareceu”.

Ainda que Mweso e seus arredores não tenham testemunhado os níveis de conflito e violência dos últimos quatro anos, há um nível praticamente constante de conflitos de baixa intensidade entre grupos armados e, com isso, as pessoas estão regularmente sujeitas à violência.

“Há cerca de duas semanas”, diz Stanley, “dois primos e um tio se depararam com um grupo de criminosos a caminho de suas terras, próximo a um pequeno lago na região de Kitchanga, e foram alvejados”.

“Eles se refugiaram no lago, mas os criminosos cercaram as margens do lago, atiraram e os mataram. Nós encontramos os corpos três ou quatro dias depois e os enterramos no mesmo lugar”.

“Não fazem nem duas semanas que tive a experiência de uma morte em minha família”.

É difícil imaginar alguém psicologicamente apto a se reerguer depois desses eventos, mas, por meio de treinamento, Stanley encontrou formas de lidar com isso.

“Como conselheiros, ajudamos nossos pacientes ouvindo-os, mas também podemos nos conectar com eles por meio de experiências que compartilhamos”.

Ainda que não seja uma prática comum em outros lugares, esse método ajudou a romper certas barreiras na RDC, conectando pessoas inicialmente céticas aos benefícios da assistência de saúde mental.

“Quando alguém vem até nós sofrendo porque perdeu uma casa, eu digo: ‘Ah, você perdeu sua casa. Eu entendo que você esteja profundamente afetado. Também fiquei assim.’

Nossas sessões são conduzidas, logicamente, para o benefício dos pacientes, mas refletir sobre nossas experiências em comum nos permite, como conselheiros, ser reconfortados também. Temos a certeza de que outras pessoas também são afetadas”.

Jaqueline é viúva e mãe de seis filhos. Ela trabalha como conselheira de MSF desde 2009.

Ela repete a reflexão e as emoções de Stanley: “Trabalhar com nossos pacientes realmente nos ajuda. Nós percebemos que, se estamos enfrentando os mesmos problemas que eles, também podemos lidar com isso e continuar com nossas vidas”.

“Isso nos ajuda a lidar com nossas emoções, especialmente porque estamos no mesmo terreno que eles – expostos a violência e traumas; nós também vivemos esses problemas”.

Em 1996, no auge da crise da Região dos Grandes Lagos, Jaqueline e sua família foram forçados a sair de casa. Durante cinco meses, eles dormiram na floresta sem nada além de uma lona sobre a qual se deitar.

“Dormíamos no chão, sem lençóis, sem nada”, explica Jaqueline.

“Minha irmã morreu durante a guerra, assim como seu bebê. Nunca encontramos seu corpo”.

“Naquele momento, eu fui afetada, com certeza. Não tinha certeza se ela estava morta. Eu me prendia ao pensamento de que talvez ela estivesse viva”.

“Mas o que me faz feliz e me ajuda é que ela deixou um filho, o primeiro que teve, que ficou com meu pai. Agora ele é um garoto grande”.

“Isso é algo que faz eu me sentir melhor. Posso sentir sua presença através dele”.

Como conselheira, Jaqueline tem uma confiança profunda no poder da assistência de saúde mental. Contudo, ela não desconsidera o fato de que problemas de saúde mental são frequentemente um tema tabu na comunidade.

“Quando dizemos que alguém tem um problema de saúde mental, as pessoas já começam a falar sobre ‘insanidade’ ou ‘loucura’”.  

“Mas eu vejo que todos, quase todos os congoleses, estão preocupados com os problemas de saúde mental de alguma forma. É um serviço negligenciado no país.”.

“Muitas pessoas manifestam comportamentos (agressivos) que, para o olhar destreinado, não são vistos como uma anormalidade psicológica”.

“Mas se os serviços de saúde fossem ampliados para atender as pessoas, talvez comportamentos agressivos e outros problemas diminuíssem, e haveria menos violência na comunidade”.

De volta ao campo de pessoas deslocadas de Mweso, a peça está na metade de suas três horas de duração e uma cena angustiante está acontecendo.

A filha do pai negligente está do lado de fora da casa coletando madeira, quando é abordada por dois homens armados.

Eles a perseguem pela floresta, a capturam e a mantêm no chão. A sucessão da cena não é mostrada, mas muitos na plateia já sabem o que aconteceria depois. Alguns enxugam lágrimas no rosto.

“Às vezes, as pessoas choram quando abordamos coisas que elas mesmas experimentaram em suas vidas”, diz Sifa Clementine.

“No contexto de saúde mental, no que diz respeito às lágrimas, elas são algo bom. Desde que passaram por esses problemas, essas pessoas provavelmente não tiveram tempo de chorar. É por meio das lágrimas que você consegue alívio”.

Traumatizada, a filha volta para casa. No dia seguinte, um agente de sensibilização de MSF vai ao ser vilarejo para anunciar os serviços oferecidos pela organização, entre eles o aconselhamento para sobreviventes de violência sexual.
Com a ajuda de sua mãe, a menina consegue ir até o hospital de Mweso para conversar com um médico e um conselheiro psicossocial de MSF.

Como diz Sifa: “Nem todos aceitam a ideia de que as pessoas podem ser curadas com palavras. Mas eu sempre digo às pessoas que, sem saúde mental, não existe saúde”.
 

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