Reconstruindo vidas quebradas: MSF trata manifestantes feridos em Bagdá

Como a reabilitação e a fisioterapia precoces podem reduzir sequelas físicas e psicológicas

Reconstruindo vidas quebradas: MSF trata manifestantes feridos em Bagdá

Em 2017, quando a guerra para reconquistar cidades iraquianas do grupo Estado Islâmico (EI) estava deixando um grande número de pessoas mortas, feridas ou mutiladas, Médicos Sem Fronteiras (MSF) abriu o Centro de Reabilitação Médica de Bagdá (BMRC, na sigla em inglês), na capital iraquiana, para fornecer reabilitação médica e física precoce para os homens, mulheres e crianças feridos durante os combates.

Quando a guerra saiu das manchetes, o BMRC expandiu seus critérios de admissão e começou a receber sobreviventes de traumas não-violentos, como os envolvidos em acidentes de trânsito e industriais, bem como os que continuavam sendo feridos pela violência em Bagdá.

À medida que protestos em massa contra a deterioração das condições de vida, o desemprego e a falta de serviços básicos eclodiram em Bagdá, no dia 1º de outubro de 2019, as unidades de saúde da capital foram tomadas por pessoas feridas pela violência presente nos protestos.

Desde o início, MSF acompanhou de perto a situação e foi até outras unidades de saúde para identificar suas necessidades e, então, fazer doações de suprimentos e prestar apoio médico de emergência.

Ao mesmo tempo, o BMRC, que inicialmente tinha capacidade de 20 leitos, foi ampliado para atender até 30 pacientes, de outubro a dezembro de 2019. O centro trata pessoas que precisam de fisioterapia e cuidados pós-operatórios precoces, incluindo apoio psicológico, para identificar e tratar os problemas de saúde mental que acompanham esses pacientes.

Feridas de guerra em tempos de paz

Por volta das 9h30 do dia 27 de outubro, a esposa de Yasser Falah* contou a ele que estava grávida. Duas horas depois, ele foi atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo e levado de tuk-tuk para um hospital próximo. Ele foi encaminhado para outro hospital, onde passou por duas cirurgias antes de ser transferido para o BMRC para iniciar sua reabilitação.
Yasser tem problemas para dormir à noite. Sua mente viaja para o norte do país, onde teve que desenterrar o corpo de sua mãe dos escombros de sua casa, atingida por um ataque aéreo durante a guerra para retomar as cidades iraquianas do EI. Apesar de tomar pílulas para ajudá-lo a dormir, ele não descansa mais do que duas horas. Yasser perdeu o apetite e só come uma parte da comida acumulada ao lado da cama de vez em quando.

“Eu me formei no Instituto de Belas Artes, mas, depois da lesão, perdi a vontade de desenhar. Sempre penso na minha família e no meu trabalho, sou a única fonte de subsistência para eles, mas por causa da minha lesão não trabalho há três semanas”, diz.

Com as hastes de metal de um fixador externo saindo da perna esquerda, Yasser usa muletas para se movimentar e visitar outros pacientes no BMRC. Ele fica no terraço para aproveitar algumas horas de sol e fumar cigarro junto com outros pacientes. Eles se tornam amigos lá em cima, onde podem compartilhar suas esperanças e preocupações, desabafar suas emoções e sonhar com uma rápida recuperação para retomar suas vidas.

As preocupações de Yasser são ecoadas por outros pacientes do BMRC que foram feridos durante os protestos. Embora suas feridas não sejam tão chocantes para a equipe médica iraquiana experiente de MSF, os ferimentos de muitos pacientes são comparáveis aos feridos de guerra recebidos em 2017, em termos de gravidade.

*O nome foi alterado

Vidas e membros perdidos

Levou horas para deter o gás lacrimogêneo e depois remover a cápsula da bomba que estava alojada na perna direita de Saif Salman. Após várias cirurgias, em diferentes unidades de saúde em Bagdá, foi tomada a decisão de amputá-la. Quaisquer outras intervenções pareciam inúteis. Tinha de ser feito assim.

“Eu estava na ponte al-Jumhouriyah quando uma bomba de gás lacrimogêneo atingiu minha perna. A bomba entrou na minha perna e continuou liberando gás. Abri os olhos e vi motoristas de tuk-tuk e outras pessoas que estavam à minha volta. Eles me levaram para um hospital”, diz ele, acrescentando que foi baleado à queima-roupa.

“É verdade, eles amputaram minha perna, mas eu tenho duas mãos e outra perna. Mais três membros com os quais posso trabalhar. Eu não perdi nada. Na verdade, agora me sinto mais leve”, diz Salman, 24 anos de idade, com um sorriso no rosto.

Seu senso de humor certamente vai acelerar seu processo de recuperação e os de seus colegas pacientes, mas seu trauma e angústia estão escondidos logo abaixo da superfície. Salman começa a chorar quando se lembra de seu colega e amigo que foi morto durante os protestos.

“Não suporto ver a foto dele e fico triste quando me lembro dele. Ele não merecia morrer – preferia ter morrido em seu lugar” diz, soluçando.

A reabilitação precoce significa melhor reintegração

Dentro do BMRC, uma equipe multidisciplinar de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e equipe de suporte não-médico trabalha não apenas para tratar os pacientes no departamento de internação, mas também os pacientes que estão bem o suficiente para voltar para casa.

O trabalho começa quase assim que o efeito anestésico desaparece e o paciente é encaminhado ao BMRC por uma rede de médicos nos hospitais de Bagdá ou pela equipe de MSF que visita os hospitais da cidade em busca de pacientes que precisam de cuidados intensivos pós-cirúrgicos e de reabilitação.

“A reabilitação médica precoce pode reduzir complicações médicas de curto prazo e sequelas físicas e psicológicas de lesões de longo prazo”, explica o coordenador médico do BMRC, dr. Aws Khalaf.

Khalaf diz que as consequências de quando não se recebe cuidados pós-operatórios precoces podem incluir coágulos sanguíneos e infecções. Ao reduzir os impactos das lesões e acelerar o processo de recuperação dos pacientes, a equipe médica do BMRC “os ajuda a se reintegrarem em suas comunidades como indivíduos ativos e não como um fardo para outras pessoas”.

Além da reabilitação física, a equipe médica do BMRC vê o apoio em saúde mental como um componente-chave da reabilitação. Muitas vezes, durante as sessões, psicólogos e conselheiros procuram abordar a depressão e a ansiedade entre os pacientes, lidar com suas memórias muitas vezes traumáticas e ajudá-los a se adaptarem às suas novas realidades.

Até o momento, 75% dos pacientes tratados por MSF no BMRC receberam alta com resultados positivos em seu estado de saúde mental.
 
O último impacto social da violência

Assim como muitos dos feridos nos últimos combates no Iraque, o motorista de tuk-tuk de 16 anos de idade Kadhim Dhaygham e seu irmão eram os ganhadores de pão de sua família. Eles começaram a trabalhar desde muito jovens devido às mesmas condições econômicas que os pressionaram a protestar.

Na tarde de domingo, 27 de outubro, depois de estacionar seu tuk-tuk perto da ponte al-Jumhouriyah e tentar atravessar a rua, uma cápsula de bomba de gás lacrimogêneo bateu na perna de Kadhim.

“Foi tão forte que, depois de bater na pessoa na minha frente, a bomba atingiu minha perna e depois o cara atrás de mim. Eu tentei me levantar e comecei a engatinhar, então, um cara me levou para um tuk-tuk. O motorista me levou para o Hospital Universitário de Neurocirurgia, onde me encaminharam para o hospital al-Kindy”, lembra Kadhim.

Depois de passar por uma cirurgia de emergência em outro hospital, onde colocaram um fixador externo para unir os ossos quebrados, Kadhim foi encaminhado por seu cirurgião ao BMRC, onde diz que a equipe médica “devolveu vida” à perna dele com fisioterapia precoce.

Apesar da melhora em seu estado de saúde, Khadim começou a sentir que está “privado de tudo”. Ele se sente amargurado por não poder ver seus amigos com mais frequência ou sair de casa. Ele anseia pela vida normal, desfrutando de jantares ao ar livre com amigos e passeios de tuk-tuk na cidade. Kadhim, que é de um bairro pobre da parte leste da capital iraquiana, mal pode esperar para voltar ao trabalho e ajudar seu irmão mais velho a sustentar sua família.

“Nós dois somos responsáveis por sustentar nossa família. Somos como um par de pernas, se um de nós cai, o outro também sofre”, finaliza Kadhim.

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