Reflexões sobre quatro décadas de MSF no Sudão do Sul: abraçando a complexidade para progredir

Mamman Mustapha, coordenador-geral de MSF no Sudão do Sul, fala sobre a atuação da organização ao longo de 40 anos no país.

Enfermeiro de MSF atende paciente em clínica móvel no Alto Nilo, no Sudão do Sul. © Nasir Ghafoor/MSF

O Sudão do Sul, muitas vezes referido como o país mais jovem do mundo, foi marcado por complexidades e expectativas de progresso. Em todo o país, as necessidades de saúde das pessoas aumentaram significativamente nos últimos anos, enquanto o acesso limitado aos serviços médicos e a escassez de profissionais de saúde tiveram um impacto negativo na vida das pessoas. O Sudão do Sul tem uma das menores expectativas de vida do mundo – de apenas 59 anos – e a maior taxa de mortalidade materna.  É por isso que uma das maiores operações de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no mundo está no Sudão do Sul.

Desde 2015, as equipes de MSF no país forneceram mais de 7,5 milhões de consultas ambulatoriais e trataram quase 2,5 milhões de pacientes com malária. Dos 77 países em que MSF trabalha atualmente, empregamos mais profissionais no Sudão do Sul do que em qualquer outro lugar. A resposta de MSF no país está classificada como o nosso terceiro maior programa médico, com um orçamento de mais de 120 milhões de dólares para 2023.

Nossas equipes trabalharam pela primeira vez na região em 1983, fornecendo assistência a mais de 100 mil refugiados que fugiram de conflitos em Uganda, país vizinho.  Desde então, MSF continuou a responder às necessidades humanitárias na área, a ponto de ter se tornado parte integrante do sistema de saúde do Sudão do Sul. Atualmente, nossas equipes trabalham em sete dos 10 estados do país e em duas áreas administrativas.

Considerando a escala de nossas operações e nosso objetivo de fornecer assistência médica a pessoas afetadas por conflitos, epidemias, desastres ou exclusão do atendimento médico, nosso investimento e presença substanciais no Sudão do Sul ao longo de quatro décadas na região podem parecer lógicos. No entanto, após 40 anos de trabalho de MSF na região, acho que é evidente a necessidade de um envolvimento sustentável do governo do Sudão do Sul e dos doadores internacionais no desenvolvimento que garanta o progresso ao país.

Inundações no Sudão do Sul deslocaram milhares de pessoas. Dezembro de 2021. © Sean Sutton

 

A crise no Sudão do Sul não é uma emergência aguda, mas prolongada. O país enfrenta uma infinidade de desafios humanitários e de saúde. O contexto humanitário mais amplo agrava os resultados insuficientes na área médica, ligados aos determinantes sociais de saúde. Isso inclui mudanças climáticas, más condições de vida, deslocamento, conflitos, violência e pressões regionais, incluindo o recente fluxo de repatriados e refugiados que chegam ao Sudão do Sul como resultado da crise no Sudão. Esses fatores agravam as emergências existentes – surtos de malária, cólera, hepatite E, sarampo e altos índices de desnutrição foram reportados neste ano – e pressionam os recursos necessários para tratar condições crônicas de saúde, como a infecção por HIV.

De fato, este é um país onde qualquer tópico de saúde se torna complexo e está em constante ameaça de se transformar em uma emergência – como a malária, por exemplo, que passou a ser uma emergência sazonal no Sudão do Sul, apesar de ser evitável. Todos os anos, durante o pico da temporada de malária, mais de 50% dos pacientes nas instalações médicas que MSF administra ou apoia chegam com a doença, que é a principal morbidade e causa de mortalidade no país para crianças menores de 5 anos de idade.

Uma das principais ferramentas preventivas para a malária são as redes inseticidas de longa duração. Em teoria, parece simples fornecer às pessoas uma rede mosquiteira tratada com inseticida. No entanto, no Sudão do Sul, nenhum problema pode ser tratado isoladamente. Quando as pessoas se encontram em uma situação extrema sem comida, é provável que vendam as redes ou as usem para pescar em áreas inundadas. Não é que elas não entendam a importância de dormir sob uma rede, mas sua necessidade imediata é comer.

Para garantir que as redes inseticidas de longa duração estejam disponíveis e sejam utilizadas no Sudão do Sul, é necessário considerar toda uma série de questões, incluindo prioridades dos doadores, mudanças climáticas, contexto de segurança, as populações deslocadas, educação e desafios logísticos devido à infraestrutura insuficiente.

Tendo trabalhado no Sudão do Sul nos últimos anos, posso ver que o foco em apenas uma questão, de acordo com o mandato de apenas uma organização, simplesmente não é viável neste contexto complexo e volátil e apenas dificulta o progresso. A coordenação estratégica intersetorial e o investimento tangível são necessários em todas as áreas, com os atores humanitários continuando a responder às necessidades, enquanto os parceiros fornecem investimentos sustentados e estáveis para alcançar o progresso a longo prazo.

A paciente Nyamal Duop Gatluak retorna para Old Fangak em um voo de MSF após ter recebido tratamento no hospital de MSF em Bentiu. Ela está acompanhada de seu irmão, Jal Duop Gatluak. Junho de 2022. © Florence Miettaux

 

A paciência é fundamental e trabalhar coletivamente é vital para o sucesso. MSF é uma organização médico-humanitária de emergência que responde às necessidades imediatas das pessoas, mas há uma lacuna cada vez maior nos investimentos de parceiros sob escrutínio de suas próprias pressões financeiras.

Por exemplo, entre 2022 e 2023, a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, na sigla em inglês) forneceu 800 milhões de dólares para causas humanitárias no Sudão do Sul. Mas, neste ano fiscal nos Estados Unidos, a agência está enfrentando cortes de 45%.  Isso é prejudicial para um sistema de saúde fortemente dependente do apoio internacional. O governo do Sudão do Sul precisa reconhecer essa necessidade e mobilizar seus recursos. Por outro lado, o país simplesmente não tem recursos ou capacidade de preencher essa imensa lacuna sozinho.

Neste nosso 40º ano no Sudão do Sul, peço ao governo e aos doadores de desenvolvimento do Sudão do Sul que deem um passo para trás e olhem a situação do país em seu conjunto. O investimento e o engajamento no Sudão do Sul ao longo dos anos foram imensos, mas agora estão muito escassos.

Este não é o momento de retirar e perder o valor dos investimentos realizados. É o momento de colaborar, de abraçar a experiência adquirida e de se comprometer com ações sustentáveis e concretas. Este não é o momento de permitir que a complexidade e a grande escassez impulsionem as decisões. Em vez disso, é o momento de intensificar, manter o ímpeto e construir sobre o que já foi alcançado.

Muitos dos desafios no Sudão do Sul existem devido ao seu frágil sistema de saúde, que MSF e o setor humanitário têm apoiado. Mas isso não é sustentável e o progresso nunca será alcançado sem um equilíbrio claro entre os esforços humanitários e o fortalecimento do sistema. Em suma, o progresso será impossível sem o apoio tangível do governo do Sudão do Sul e dos doadores internacionais de desenvolvimento.

Mamman Mustapha é coordenador-geral de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Sudão do Sul.

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