Refugiados centro-africanos no Chade: “O que está acontecendo agora é inaceitável”

Equipe de MSF detalha condições de refugiados centro-africanos, que vivem em meio a falta de alimentos e abrigo

São 19h e já é noite em Baibokoum. Estamos a cerca de 30 km da fronteira com a República Centro-Africana (RCA). Aqui é onde a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) estruturou suas instalações. Todos os dias, a equipe viaja de Baibokoum a Bitoye, um pequeno vilarejo de 10 mil pessoas cuja população dobrou com a chegada de milhares de pessoas que vieram a pé ou chegaram em veículos buscando refúgio no Chade, após terem escapado da violência na RCA.

MSF está em Bitoye há pouco mais de três semanas e estruturou ali um centro de saúde primária. Com cerca de cem consultas sendo realizadas por dia, a sala de espera nunca está vazia. Mulheres e crianças, na maioria das vezes, aguardam pacientemente em bancos ou em colchonetes debaixo de uma mangueira. Uma delas tenta embalar seu bebê, que tem quase um mês. Ela conta que foi obrigada a fugir, descalça, para a mata com seus sete filhos após forças anti-balaka terem atacado Bocaranga, seu vilarejo de origem. A mesma história é contada por todas as outras mulheres que chegam aqui buscando refúgio; a maioria delas é da etnia Fulani. Seus maridos ou estão mortos ou ficaram para trás, na mata, com as poucas cabeças de gado que lhes restaram.

“Nunca vi isso antes”, admite o Dr. Aaron Zoumvournai, médico de MSF que liderou as avaliações feitas pela organização em Bitoye, Goré e Sido, os três maiores pontos de entrada no Chade para refugiados da RCA. Ele descreve os ferimentos que os refugiados, em sua maioria de Bangui, apresentavam logo de sua chegada: cicatrizes nas cabeças das crianças causadas por golpes de machete, uma menina que teve dois de seus dedos cortados por tesoura “como lembrete”, diversos ferimentos à bala e evidências de tortura.
 
Ele conta a história de um paciente do centro de saúde de Bitoye, que fora encaminhado posteriormente ao hospital de Baibokoum. “Ele veio de um vilarejo na região de Bouar. Naquele dia, estava sozinho em casa quando membros dos anti-balaka atacaram o vilarejo. Eles atearam fogo à sua casa. Ele conseguiu escapar por uma janela, mas, enquanto fugia, viu pelo menos quatro pessoas sendo mortas a golpes de machete e pensou nas tantas outras que haviam sido mortas queimadas vivas em suas casas.” Depois, ele foi capturado pelos anti-balaka. “Eles ordenaram que ele colocasse seu pé em um barril em chamas e ameaçaram matá-lo se ele assim não fizesse. Quando perdeu a graça torturá-lo, eles foram embora.” Ele foi levado à beira da estrada por um senhor que passou por ali e foi levado por um caminhão. “Ele não sabe o que aconteceu com sua família, mas não tem esperanças”, concluiu Aaron.
 
Em Goré, uma multidão de 6 mil pessoas se reuniu em torno de um antigo hospital. Muitos são de Bossangoa. Geralmente, eles dormem no chão e constroem abrigos improvisados usando galhos, tangas ou véus para terem alguma proteção. Quando as primeiras chuvas cairem, tudo vai ser levado. Um senhor para a equipe de MSF. Ele chegou esta manhã, a pé, vindo da fronteira. Depois, uma mulher se aproxima com um bebê em seus braços. Ela deu à luz prematuramente e não consegue amamentar. “Esta criança só está com fome”, diz o Dr. Francis Koné, médico de MSF no Chade. Nas últimas duas semanas, esse recém-nascido não teve nada para comer e está se agarrando à vida por um fio.
 
Em Sido, o estresse tem maior intensidade por causa do número de pessoas envolvidas. Mais de 13 mil refugiados se instalaram aqui, a algumas centenas de metros da fronteira. Há apenas três dias, o oitavo e último comboio escoltado pelo exército do Chade trouxe mais 3.500 pessoas. Kaltouma foi uma delas. Ela foi obrigada a fugir de Yaloke, seu vilarejo de origem, mais de seis semanas atrás, devido a um ataque e posterior ocupação do local por forças anti-balaka. Ela passou 20 dias na mata com seu filho mais velho, de 13 anos, e outros dois gêmeos, de um ano de idade. Entre os 20 membros da família que desapareceram durante o ataque, estavam seu marido e seu filho de oito anos. Graças à ajuda de familiares em Bangui, ela descobriu que o exército francês estava a caminho para escoltá-los da mesquita de Yaloke para o aeroporto da cidade. Depois de esperar por três semanas, ela batalhou para conseguir um lugar no caminhão do exército chadiano. Despreocupadamente, ela troca os gêmeos de seios enquanto amamenta os dois ao mesmo tempo. Ela se instala debaixo de uma árvore próximo do hospital de MSF com outros refugiados. Nenhum deles havia pensado em ir, um dia, ao Chade. “Somos 100% centro-africanos”, ela diz. Mas o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) ainda não está aqui para avaliar a situação.
 
Ali, as autoridades locais estão fazendo todo o possível na tentativa de lidar com essa crise e aliviar alguns dos conflitos que começaram a surgir entre os refugiados e as populações locais, mas faltam recursos e suporte. MSF é a única organização internacional em campo em Sido. “Enquanto essas famílias estiverem impossibilitadas de exercitar seu direito a pedir asilo no Chade, elas não poderão ter o status de refugiados e não serão qualificadas para receber assistência do ACNUR. Ou ainda, elas podem ser enviadas, involuntariamente, a um destino final onde não haverá absolutamente ninguém para ajudá-las”, afirma Sarah Chateau, coordenadora-geral de MSF no Chade.
 
“Cerca de metade dos pacientes que eu vi até o momento me disseram que estavam famintos”, conta Antoine, médico de MSF em Sido. “Basta dar uma volta pelos becos onde os refugiados puderam se instalar, de forma mais ou menos bem-sucedida, e você verá com seus próprios olhos os efeitos da falta de comida.” Mas a emergência alimentar não é a única preocupação. Atualmente, há apenas 20 latrinas, 300 tendas e 4 pontos de distribuição de água para 13 mil pessoas em Sido. No final de março, virão as primeiras chuvas e os abrigos serão levados. O risco de epidemias será um tanto mais grave porque não há um número mínimo de instalações sanitárias estruturadas. E, mesmo agora, a necessidade de sobreviver está levando a maioria das mulheres vulneráveis a se prostituir para poderem alimentar seus filhos.
 
“É essencial que, por um lado, seja reconhecido o fato de que a vasta maioria dessas pessoas tenham fugido de situações violentas para salvar suas vidas, e são, por isso, refugiados, e que, por outro, eles recebam aqui  assistência internacional imediatamente, em forma de alimento, tendas, pontos de distribuição de água e instalações sanitárias”, diz Sarah. “O que está acontecendo agora no Chade é inaceitável.”

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