Relatos sobre a chegada de centenas de sudaneses feridos no Chade

De 15 a 18 de junho, 62 mulheres grávidas foram atendidas com ferimentos à bala e por outras agressões; em três dias, atendemos 858 feridos em conflitos no Sudão.

© Mohammad Ghannam/MSF

Em meados de junho, as equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) na cidade de Adré, no Chade, atenderam um grande número de feridos que haviam fugido dos conflitos no Sudão. O fluxo foi um dos maiores, em termos de volume, já vistos por nossas equipes: 858 feridos de guerra recebidos de 15 a 17 de junho. O número de mulheres grávidas feridas também foi alarmante. De 15 a 18 de junho, 62 gestantes foram atendidas no hospital de Adré por ferimentos à bala ou causados por outras agressões.

O grande fluxo de feridos chegando ao hospital de Adré teve início em 15 de junho, quando as pessoas finalmente conseguiram sair de El Geneina, capital do estado de Darfur Ocidental, no Sudão, após dois meses encurraladas na cidade. Apenas naquele dia, a instalação recebeu 261 feridos de guerra e, no dia seguinte, foram quase 400 pessoas atendidas.

 

Entre o final de maio e início de junho deste ano, a violência se intensificou no estado de Darfur Ocidental. A principal estrada que liga Adré a El Geneina foi fechada naquele período, por isso somente algumas pessoas feridas conseguiram escapar pela fronteira e chegar à unidade cirúrgica de emergência criada pelas equipes de MSF, em parceria com o Ministério da Saúde do Chade, no hospital da cidade de Adré.

No dia 15 de junho, a situação mudou, e as pessoas puderam escapar de El Geneina. Papi Maloba, o único cirurgião de MSF presente em Adré naquele momento, havia começado o dia como de costume: depois de fazer sua ronda pelos pacientes e identificar os que deveriam ir para a sala de cirurgia, ele e sua equipe começaram a operar um menino.

“Não esperávamos tantos pacientes feridos de uma só vez.”

– Relato de Papi Maloba, cirurgião de MSF no Chade.

“De repente, as ligações começaram: ‘Vamos lá, vamos lá, há pacientes chegando de todos os lugares!’. Expliquei aos meus colegas que não podíamos deixar esse paciente com o abdômen aberto. Na sala de operações, tudo estava estável, mas lá fora havia muita comoção. Havia veículos da força militar conjunta Chade-Sudão trazendo pacientes; equipes de MSF trazendo pacientes; outros chegando em carrinhos conduzidos por animais ou pelos próprios familiares.

Nós não sabíamos por onde começar. As lesões eram graves: abdômen, tórax, membros inferiores, nádegas e costas. Nosso trabalho era fazer a triagem das lesões mais graves, examiná-las e priorizá-las para a cirurgia.

Em menos de duas horas, o hospital foi transformado em um verdadeiro acampamento. Não sabíamos onde colocar os pacientes que ainda estavam entrando.

Sabíamos que se o caminho para El Geneina se abrisse – se houvesse negociações bem-sucedidas para abrir um corredor que permitisse a passagem de pacientes de El Geneina – mais pessoas chegariam ao hospital em Adré. Estávamos preparados, mas não esperávamos tantos pacientes feridos de uma só vez.

Pensamos que no dia seguinte seria um pouco mais estável, que isso nos permitiria planejar as atividades adequadamente. Acabou sendo pior: recebemos cerca de 400 novos feridos.

Tínhamos duas salas de cirurgia: uma grande e bem equipada e uma menor, que não possuía todos os equipamentos que precisávamos. Então, precisamos alternar entre quartos e pacientes. Assim que terminava de operar um paciente – uma cirurgia no abdômen, por exemplo – mudava para a sala menor, onde eu poderia facilmente fazer procedimentos menos complexos, enquanto a primeira sala estava sendo higienizada, e assim por diante. Trabalhamos dessa forma das 8h às 23h. Foi muito cansativo. O governo chadiano enviou, então, uma equipe cirúrgica para apoiar, o que foi um grande alívio.”

As pessoas em Adré responderam a esse grande fluxo de feridos com muitos esforços para acomodar e fornecer tratamento médico aos refugiados recém-chegados. Foi necessário criar espaço, montar tendas e encontrar apoio adicional.

Os moradores da cidade trouxeram comida para os refugiados. O coordenador-médico do hospital e o residente pediátrico também apoiaram a unidade cirúrgica de emergência, juntamente com vários profissionais do Ministério da Saúde do Chade, enquanto a ONG Première Urgence Internationale cuidou dos chamados “casos verdes”, nos quais a vida do paciente não estava imediatamente em perigo.

 

Uma mulher baleada no pescoço que foi encaminhada ao hospital de Abéché, próximo a Adré. © Mohammad Ghannam/MSF

 

“Foi impressionante ver tantas mulheres grávidas feridas.”

 – Relato da Clémence Chbat, obstetriz de MSF.

“A primeira paciente que fui chamada para ver foi uma mulher que levou um tiro no estômago e no peito enquanto estava grávida de seis meses. Temíamos muito por ela, porque uma parte do projétil estava alojada em seu útero. Infelizmente, o bebê morreu, mas ela conseguiu sobreviver. Foi impressionante ver tantas mulheres grávidas com ferimentos nos membros e no abdômen. Elas vieram de El Geneina e relataram cenas terríveis, como ter que correr em meio aos tiros, com o risco de perder seus filhos no caminho, serem atacadas e sofrerem violência sexual.”

 

Profissionais de MSF atendem feridos no hospital de Adré, em 16 de junho. © Mohammad Ghannam/MSF

 

Com o fluxo de feridos, novos refugiados vindos de El Geneina também chegaram em Adré. Esse aumento repentino da população está gerando grandes necessidades humanitárias em todas as áreas: assistência médica, abrigo, apoio alimentar, água e saneamento, em um local onde o acesso a essas necessidades já é difícil para a população local.

 

Uma mulher constrói um abrigo no acampamento de trânsito em Adré, onde os refugiados recém-chegados de El Geneina estão sendo abrigados. © Johnny Vianney Bissakonou/MSF

 

“Entre as crianças, 80% estão com desnutrição aguda grave com complicações.”

– Relato de Japhet Niyonzima, líder da equipe médica de MSF no Chade.

“Costumávamos ter entre 35 e 50 crianças na unidade pediátrica a qualquer momento, mas agora estamos tratando entre 200 e 250 crianças. Entre elas, 80% estão com desnutrição aguda grave com complicações. Uma das prioridades hoje deve ser expandir os serviços pediátricos e nutricionais nos centros de saúde e locais onde estão as pessoas refugiadas para tratar as crianças mais cedo, antes que sua condição piore.”

Há algumas semanas, cerca de 200 feridos permaneciam no hospital em Adré. Alguns deles precisarão de acompanhamento, principalmente fisioterapia, por um longo tempo para se recuperar. No final de junho, para melhorar a capacidade de atendimento e a qualidade dos cuidados oferecidos, MSF montou e começou a trabalhar em seu hospital inflável, incluindo uma sala de esterilização e raio-X e duas salas de cirurgia.

Mais de 358 mil pessoas já fugiram do Sudão para o Chade desde o início dos conflitos, em abril.  Os locais de trânsito estão se multiplicando, enquanto novos acampamentos estão sendo montados, inclusive em Arkoum, onde MSF começou a fornecer cuidados médicos.

Cerca de 400 mil refugiados sudaneses já estavam no Chade antes desta fase do conflito atual, tendo fugido do Sudão durante os últimos 20 anos. Para apoiar os que estão em situação de maior vulnerabilidade, sejam chadianos ou refugiados, é necessário fornecer ajuda humanitária em alta escala a longo prazo.

Essa assistência ajudará a absorver os impactos dos conflitos no Sudão em uma área já marcada pela insegurança alimentar e pela falta de acesso a água e a cuidados de saúde.

 

 

 

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