A relevância das vacinas no combate às 10 maiores ameaças em saúde global

Felipe de Carvalho, da Campanha de Acesso a Medicamentos de MSF, comenta a nova lista da OMS sobre ameaças à saúde

A relevância das vacinas no combate às 10 maiores ameaças em saúde global

Na semana passada, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou uma lista com as principais ameaças de saúde para 2019. A lista inova por mesclar ameaças clássicas, como doenças altamente letais; com questões estruturais, como precariedade de sistemas de saúde; e comportamentais, como o movimento anti-vacinas.

A relutância crescente em relação ao uso de vacinas, associada ao ressurgimento de doenças até então sob controle, talvez seja o ponto da lista que mais chamou atenção. Essa relutância ocorre em geral em países desenvolvidos, onde há acesso a vacinas. A atuação de Médicos Sem Fronteiras (MSF) se dá em contextos praticamente opostos, onde há uma grande dificuldade no acesso, o que faz com que nossas equipes testemunhem de perto o efeito devastador de determinadas doenças, bem como o clima de gratidão e satisfação nas filas que se formam em comunidades remotas quando são realizadas campanhas de vacinação.

De acordo com a lista da OMS, 1,6 bilhão de pessoas (22% da população global) vivem em contextos com infraestrutura precária de saúde devido a fatores como fome, conflitos e deslocamentos em massa. A crise migratória no Mediterrâneo é um desses contextos, onde milhares de pessoas não têm acesso aos cuidados mais básicos. A crise é evidente nas ilhas gregas de Lesbos, Chios e Samos que se tornaram prisões a céu aberto para um número cada vez maior de refugiados impedidos de entrar na Europa.

Desde 2016, MSF tem tentando ampliar atividades de vacinação na Grécia para atender a esta população. No entanto, para a vacina de pneumonia, que é a principal causa de morte entre crianças, o preço era proibitivo: 70 dólares (cerca de 250 reais) por dose, para uma vacina que precisa de três doses. Desde então, MSF tem se empenhado pela redução do preço e para ter acesso ao mecanismo humanitário da OMS para aquisição de vacinas. Depois de uma campanha pública global de MSF, chamada “Dose Justa”, as empresas fabricantes reduziram o preço para 3,10 dólares (cerca de 11,50 reais) por dose e, depois de muitas negociações, finalmente em dezembro do ano passado a OMS autorizou o uso do mecanismo humanitário na Grécia, o que vai se traduzir num preço de 3,05 dólares (cerca de 11,31 reais). Num primeiro momento isso permitirá que as equipes de MSF realizem a vacinação de mais de 2 mil crianças com idade entre 6 meses e 5 anos de idade.  

A lista da OMS também menciona a resistência a antibióticos como uma grande ameaça de saúde. Trata-se da capacidade de bactérias, parasitas, vírus e fungos de sobreviver ao uso desses medicamentos, o que se traduz na diminuição da possibilidade de tratar infecções. Isso aumenta a periculosidade de doenças antigas como tuberculose, gonorreia e salmonela e impacta também práticas médicas modernas, como cirurgias. Em relação a esse tema, muitas ações urgentes precisam ser tomadas, especialmente na Pesquisa e Desenvolvimento de novos antibióticos. Mas parte da solução também passa pela vacinação. Isso porque um dos motivos para o aumento da resistência a antibióticos é o seu uso inadequado e desmedido. Parte desse uso se explica porque os antibióticos são usados para tratar infecções que poderiam ter sido evitadas por meio da vacinação. Estima-se por exemplo que 11,4 dias de uso de antibiótico poderiam ser evitados anualmente se houvesse acesso universal a vacinação de pneumonia.

A lista da OMS menciona ainda doenças como Ebola, Influenza e outros patógenos de alto risco para os quais ainda não existem as devidas proteções. O desenvolvimento de vacinas é, portanto, um eixo estratégico desses esforços. Nesse sentido cabe lembrar que uma vacina experimental promissora para Ebola foi pesquisada no Canadá com recursos públicos e em 2010 licenciada para uma empresa de biotecnologia, que em 4 anos pouco investiu no desenvolvimento do produto. Em 2014, em meio ao surto da doença, vendeu a tecnologia para outra empresa, por um valor 240 vezes mais alto do que o que havia pago para o governo do Canadá. No entanto, a escassez dos estudos realizados entre 2010 e 2014 prejudicou o desenvolvimento posterior da vacina impedindo que servisse de ferramenta para lidar com a crise de 2014-2015 na África Ocidental. Outra preocupação é que muitas das vacinas desenvolvidas não são adaptadas a condições climáticas e logísticas de países de baixa renda, onde os sistemas de saúde são bastante frágeis.

Essas falhas do sistema de inovação têm um custo humano incalculável. Alguns esforços têm surgido para tentar aumentar a antecipação e a coordenação na pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Entre eles está a Coalizão de Inovações para Preparação para Emergências (CEPI), que tem reunido governos e instituições filantrópicas em torno do investimento em novas vacinas para epidemias atuais e futuras. A CEPI tem mobilizado um grande volume de dinheiro, já tendo ultrapassado os 700 milhões de dólares (mais de 2,6 bilhões de reais). No entanto, os compromissos da CEPI para garantir que as vacinas desenvolvidas serão acessíveis para as populações que mais precisam são extremamente vagos e fracos.

Vacinação é uma estratégia eficiente em relação a pelo menos cinco das preocupações apontadas pela OMS, pois contribui para: eliminar doenças antigas, combater a crise de resistência a antibióticos e aumentar a capacidade global de impedir o agravamento de emergências de saúde, como influenza, Ebola e dengue. No entanto a política econômica da inovação e da distribuição global das vacinas tem sido devastadora com populações vivendo em situações de vulnerabilidade ou que só têm ao seu alcance sistemas de saúde deficientes (dois outros itens da lista da OMS). Essas pessoas são as que mais necessitam das melhores ferramentas médicas e ao mesmo tempo as mais excluídas do acesso. A arquitetura dessa exclusão tem como pilares preços proibitivos e um sistema de inovação que não gira em torno das necessidades de saúde. MSF tem feito incansáveis esforços para chegar a essas populações sem deixar de, no trajeto, apontar caminhos para a transformação dessa arquitetura da exclusão que está desenhada nas políticas comerciais e de saúde global.
 

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