República Democrática do Congo: seis histórias de pessoas que, para sobreviver à violência, deixaram suas casas para trás

“Fico fora de mim pensando que meus filhos podem passar a noite toda sem comer.”

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Escola na cidade de Minova, Kivu do Sul, onde vivem centenas de pessoas deslocadas. Foto: Igor Barbero/MSF ‌

Durante o ano de 2022, o conflito se intensificou na província de Kivu do Norte, no leste da República Democrática do Congo (RDC). Cerca de 1 milhão de pessoas foram forçadas a deixar suas casas para fugir da violência. Desde o início de 2023, mais de 80 mil pessoas buscaram refúgio na província vizinha, Kivu do Sul. Muitas delas passaram a viver em regiões de difícil acesso, como Hauts Plateaux, onde permanecem invisibilizadas. Compartilhamos aqui seis relatos de pessoas que, para sobreviver, atravessaram a fronteira para Kivu do Sul, deixando para trás suas casas e, muitas vezes, famílias.

 

“Fico fora de mim pensando que meus filhos podem passar a noite toda sem comer.”

– Rehema, 35 anos, de Rubaya, em Kivu do Norte.

Foto: Igor Barbero/MSF

Rehema foi forçada a deixar sua casa na cidade de Rubaya, no território de Masisi, Kivu do Norte. Agora, ela vive em Numbi, Kivu do Sul, com os quatro filhos – um deles ainda bebê.

“Tínhamos ouvido falar de confrontos, mas não achávamos que chegariam a Rubaya. Um dia de fevereiro, vi militares descendo a colina e houve tiros. Não queria esperar a violência chegar. Centenas de nós partimos. Não pude levar nada comigo, apenas meus quatro filhos. Meu marido fugiu com a outra esposa. Esta é a terceira vez que sou forçada a fugir. Nas outras ocasiões, nos refugiamos temporariamente em casas de agricultores.

Estou trabalhando aqui agora, transportando grandes sacos de carvão para Kalungu e outros lugares. Um dos meus filhos cuida do menor e os outros me ajudam. Levamos cinco horas para chegar lá e cinco para voltar. É muito cansativo, pois há muitas colinas íngremes. Quando volto, meus pés estão muito doloridos. Por este trabalho, recebemos cerca de 3 mil francos congoleses (cerca de 6,42 reais*) cada vez, e isso me permite pagar o aluguel mensal do quarto, que é de 15 mil francos congoleses ( cerca de 32,13 reais). Com o dinheiro que sobra, compro milho. Se sobrar alguma coisa, eu compro sabonete. Fico fora de mim pensando que meus filhos podem passar a noite toda sem comer. Em Masisi, comíamos quatro vezes ao dia, e uma variedade de alimentos – batata, feijão, milho… Agora só comemos uma vez, à noite, e é sempre a mesma coisa.

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Não tenho dinheiro para comprar roupas novas para nós. Não tomamos banho, então temos que nos lavar à noite, no escuro, para ter um pouco de privacidade. Também não temos vaso sanitário, então pedimos aos vizinhos para usarmos o deles. A fonte de água mais próxima fica a 15 minutos a pé, mas não podemos ir lá no escuro, então às vezes ficamos sem água. O bebê está com diarreia, então não tenho conseguido trabalhar nos últimos dias. Enquanto não houver paz, continuaremos a sofrer”.

 

“Agora, tudo o que tenho é o que estou vestindo.”

– Josephine, 32 anos, de Walikale, em Kivu do Norte.

Igor Barbero/MSF

Josephine foi obrigada a deixar sua cidade, Walikale, em Kivu do Norte. Desde fevereiro deste ano, ela vive sozinha com os sete filhos em Numbi, Kivu do Sul. O mais novo deles é Valentin, de 18 meses.

“Meu filho mais novo está doente com sarampo e malária. Depois de seis dias, ele começou a melhorar e já está comendo de novo. A princípio, pensei que fosse malária simples e eu mesma dei alguns remédios para ele, mas ele não melhorou, então vim para o hospital. Eu costumo ir para a cidade de Shange para pedir comida. Algumas pessoas me dão batatas.

Aqui, MSF fornece comida e sabão aos pacientes. Mas, depois que recebermos alta, não teremos suporte. Muitas vezes penso em desistir, mas estou tão preocupada com meus filhos que isso me mantém lutando. Levamos um mês para chegar a Numbi, caminhando pela floresta. As crianças sofreram muito, ficaram com as pernas inchadas. No caminho, um grupo armado tirou tudo de nós. Agora, tudo o que tenho é o que estou vestindo.

 

“Tínhamos um adversário: a violência. Agora, enfrentamos outro: a falta de comida.”

-Bakongo, 77 anos, de Kalenga, em Kivu do Norte.

Charly Kasereka/MSF

Bakongo foi forçado a deixar a cidade de Kalenga, em Kivu do Norte. Agora, ele está vivendo em um lugar para pessoas deslocadas em Bweremana, na fronteira entre as províncias de Kivu do Sul e do Norte.

“Esta é a primeira vez que fui deslocado devido à guerra. Minha mãe e minha mulher foram mortas. Não pude trazer nada comigo de Kalenga. Chegamos a Bweremana depois de uma caminhada de dois dias, percorrendo cerca de 55 km. Foi muito cansativo. Desde fevereiro, não recebemos nenhum tipo de assistência emergencial.

Tínhamos um adversário: a violência. Agora, enfrentamos outro: a falta de comida. Temos que ir à cidade pedir comida e dinheiro. Com frequência, fico três dias sem comer. No máximo consigo batata doce e um pouco de mandioca. Antes do conflito eu cultivava alimentos e tínhamos o suficiente para comer. A situação é ainda pior para as mães, que não têm nada para os filhos. Os abrigos não são bons, e as pessoas podem facilmente ter diarreia e cólera.”

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“Toda a minha família está dispersa e agora estou sozinho.”

– Chance, 22 anos, de Bukombo, em Kivu do Norte.

Foto: Igor Barbero/MSF

 Chance (à direita na foto) conheceu Ashafa (à esquerda) enquanto fugiam dos conflitos em Kivu do Norte. Desde o final de fevereiro, eles estão abrigados em uma escola em Minova, Kivu do Sul.

“Minha mãe foi morta, e o meu pai foi sequestrado. Toda a minha família está dispersa e agora estou sozinho. Você tem que viajar muito por aqui para encontrar algo para comer. Também não há muita água. Peguei malária e tive uma reação ruim à medicação. Estar longe de casa, em outra província, é muito difícil. Saímos em um caminhão, mas homens armados jogaram explosivos em nós. Algumas pessoas sobreviveram ao ataque, mas outras morreram. Depois, tivemos que caminhar por três dias até chegar aqui.”

 

“Levei um dia inteiro para chegar ao hospital.”

– Maniriho, 20 anos, de Karuba, em Kivu do Norte.

Foto: Igor Barbero/MSF

Maniriho saiu de Karuba, no territótio de Masisi,e agora vive em Lumbishi, em Kivu do Sul, com o marido e os quatro filhos. As crianças têm entre 6 anos de idade e 6 meses de vida.

“Estamos em Lumbishi há dois meses, desde que fugimos dos conflitos que causaram a morte de minha mãe e meu pai. No começo, ficamos em uma igreja, depois, nos deram um lugar para morar. Nós seis estamos vivendo em um quarto muito pequeno. Escolhemos vir para Lumbishi porque é possível ganhar algum dinheiro fazendo diárias de trabalho aqui. Ganho cerca de 2 mil francos congoleses (cerca de 4,28 reais) por um dia de trabalho no campo.

Meu filho mais novo está com sarampo e foi internado no hospital de Numbi há três dias. Ele é meu terceiro filho a contrair a doença. Fui encaminhada para cá pelo centro de saúde de Lumbishi. Eu vim porque o serviço é gratuito. Procurei um motociclista para me trazer, mas foi impossível achar alguém, pois a estrada está em péssimo estado devido às chuvas. Levei um dia inteiro para chegar ao hospital. Não temos assistência além do que a igreja fornece. Acho que vai ser muito complicado voltar para casa em breve.”

 

“Sempre tivemos que começar do zero.”

 Bwirandala, 52 anos, de Kitchanga, em Kivu do Norte.

Charly Kasereka/MSF

Bwirandala e a mulher, Riziki, de 48 anos, passaram a vida se deslocando. Mais recentemente, eles fugiram de Rubaya, em Masisi, na província de Kivu do Norte, para Numbi, em Kivu do Sul. Eles têm 11 filhos sobreviventes (sete meninos e quatro meninas), com idades entre 13 e 32 anos. Nove moram com eles em Numbi.

“Nos conhecemos há 36 anos em Kitchanga, onde vivemos parte da nossa vida. Diferentes conflitos e rebeliões armadas nos obrigaram a fugir de casa várias vezes. A primeira vez foi em 1997, depois em 2001, 2013, 2019 e 2022.

Nossos parentes estão dispersos pela região, a maioria na periferia de Goma (capital de Kivu do Norte). Todos os nossos 13 filhos nasceram em lugares diferentes. Dois morreram quando fugimos de casa em 2019. Durante a fuga, minha esposa e eu nos separamos. Eu tinha dois dos pequeninos comigo e Riziki, os outros nove. Na confusão, duas das crianças ficaram para trás na casa e morreram lá. Só percebemos isso dois meses depois, quando nos reencontramos.

Quando as coisas ficam mais calmas, tentamos voltar para casa. Às vezes, ganhamos bem. Eu vendia vacas em Kitchanga e tínhamos campos para cultivar. Mas perdemos tudo, nossas economias e nosso sustento. Cada vez que fugimos, sempre tivemos que recomeçar do zero. Quando você deixa tudo para trás, o mais importante é ter saúde, comida e um lugar para dormir.

Às vezes, passamos vários dias sem comida ou água, a ponto de pensar que enlouqueceria. O que nos dá força é o amor que temos uns pelos outros e pelos nossos filhos. Se eu pudesse enviar uma mensagem ao mundo, seria que precisamos de paz.

*Todos os valores estão de acordo com a cotação da moeda no dia 2 de junho de 2023.

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