Responsabilidade na República Centro-Africana

O obstetra inglês Benjamin Black detalha uma cirurgia complicada conduzida no país, chamada de “catástrofe obstétrica”

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Todos temos responsabilidades na vida. Eu, pelo menos, sei que, por vezes, subestimo as minhas. Às vezes, esqueço exatamente quais são, na medida em que se tornam parte da vida, em vez de tarefas específicas que, conscientemente, vou cumprindo.

Esta semana, me tornei fortemente consciente da responsabilidade que tenho com a população local. Após diversas semanas na República Centro-Africana (RCA), estou mais habituando com a forma como as coisas caminham por aqui, mas zonas de conforto foram criadas para serem desafiadas.

A decisão por uma cesárea nunca é fácil de se tomar, ainda mais em um país como a RCA. Se a cirurgia pode salvar a vida de um bebê em sofrimento imediatamente, também pode deixar na mulher uma cicatriz que pode trazer potenciais complicações no futuro. Com o acesso a tratamento precário e, comumente, tardio, essa opção é normalmente sempre parte do processo de decisão em um contexto em que não é incomum uma mulher passar por mais de dez gestações em sua vida. Atingir o equilíbrio entre a segurança materna e a fetal é um desafio constante. Garantir que nossas cesáreas sejam tanto adequadamente sugeridas quanto realizadas em tempo parece estar mais para arte do que para ciência.

Vamos pegar o exemplo de uma adolescente pigmeia, que estava dando à luz seu primeiro filho na última semana. Todos estavam convencidos de que ela precisaria de uma cesárea antes mesmo de ela entrar em trabalho de parto. “Pélvis pequena”, “jovem demais”, “muito baixa”. Havia um enorme ceticismo a respeito de meus planos, que permitiriam o progresso do parto. Foi esperar para ver: ela conseguiu dar à luz de forma natural e saudável.

Na sexta-feira pela manhã, quando cheguei ao trabalho, soube que havia uma mulher em trabalho de parto precoce que já havia sido submetida a uma cesárea anterior. O bebê era pequeno e, de acordo com a obstetriz da noite, o cervix ainda não estava pronto para abrir. A paciente estava descansando. Eu já tinha agendado um treinamento para a equipe sobre o parto com ventosa – uma ferramenta de sucção para ajudar no parto de bebê que, de outra forma, precisaria de cesárea –, mas decidi que daria uma rápida olhada na mulher primeiro.

Fui até a ala e pedi que ela viesse ao sofá para que eu pudesse examiná-la. Imediatamente, ficou claro que havia algo errado. Ela estava encharcada de suor e precisava de ajuda para andar. Aproximando-se do sofá, ela precisou para e sentar por um momento. Foi quando eu soube que tínhamos um problema. Pedi ajuda e a levei ao sofá. Ela parecia não estar bem e não estava tendo contrações. Quando passei minha mão sobre seu abdômen, pude sentir a cabeça do bebê logo abaixo da caixa torácica. Durante a noite, a obstetriz tinha considerado esse um indício de que o bebê estava em posição para sair com a cabeça primeiro. Pedi acesso intravenoso e rapidamente coloquei um scanner para ultrassom em sua barriga. O diagnóstico era claro: o bebê havia sido expulso do útero, agora rompido, e não estava mais vivo. Um útero rompido é comumente descrito como uma “catástrofe obstétrica”. A situação é um pesadelo. Rapidamente, preparamos-na e a levamos para o centro cirúrgico. Ela perdia muito sangue e seus sinais vitais tornavam-se cada vez mais oscilantes. Encontrar uma veia para compensar o fluido perdido tornou-se praticamente impossível.

Olhei para o anestesista. Ele estava trabalhando rapidamente para tentar que ela ficasse logo sedada para conseguir sangue para ela. Eu entrei e expliquei à equipe o que teria de ser feito. Um pouco como Forrest Gump e sua caixa de chocolates, com um útero rompido você nunca sabe o que vai encontrar. Logo que fiz a incisão, a energia elétrica caiu, mas não havia tempo para parar. “Tocha!”, gritamos em uníssono, e continuamos com um único feixe de luz até que a energia fosse restabelecida. Comecei a trabalhar as camadas do abdômen, que apresentavam cicatrizes profundas resultantes da primeira cesárea. Antes mesmo que eu pudesse ver os danos ao útero, sangue e líquido amniótico começaram a jorrar do pequeno espaço que eu tinha aberto entre as adesões. Gentilmente, abri mais espaço, garantindo que órgãos sem convite não nos atrapalhassem, mas era impossível ver qualquer coisa. Fui ainda mais fundo e consegui tirar o bebê e a placenta ao mesmo tempo. Eles estavam, literalmente, boiando à vontade, mas não havia tempo para pensar sobre aquela triste cena. Ela estava tendo uma hemorragia.

Gentilmente, levantei o útero a partir do espaço que eu havia conseguido e comecei a inspecionar o ferimento. O útero havia se rompido horizontalmente, provavelmente por conta da cicatriz da cesárea anterior, mas não tinha parado por aí. Tamanha foi a força que a ruptura continuou seu caminho até a pélvis. Na medida em que eu lutava com o sangue para ver onde a ruptura terminaria, um conjunto de palavrões fluía continuamente de minha boca – ao menos eram em inglês, e não em francês. A cada grampeada, eu gentilmente puxava as pontas do rasgo para cima, mas ainda não podia ver o final. Debatendo metade do tempo em minha cabeça e a outra metade em voz alta, eu decidia se deveria fazer uma histerectomia. A anatomia estava tão distorcida que eu não tinha certeza de onde cortar. Eu sabia que estava na merda. Não apenas eu me sentia longe da minha zona de conforto, mas fora da minha área de especialidade. Sim, rupturas uterinas são uma catástrofe.

Quando eu estava prestes a pedir um kit para a histerectomia, pensei finalmente ter visto o ápice da ruptura lá para baixo, além do alcance do meu alicate e em um tecido muito fino. Gentilmente, senti com meu dedo que, atrás dali, havia uma conexão. Com uma sutura delicada, cuidadosamente amarrei tudo. Trabalhei a volta, a anatomia estava restaurada e a hemorragia havia parado. Reparei o útero, chequei duas vezes se a bexiga havia sido poupada e se estava produzindo urina.

Durante toda a cirurgia, eu falei comigo mesmo em inglês. Olhei para cima e me desculpei com a equipe. Todos apenas riram e nos parabenizamos por termos concluído uma cirurgia digna de um pesadelo.

Durante o restante do dia, nós a monitoramos, garantindo que estava produzindo urina, que seus sinais vitais estavam estabilizados e que o dreno que eu havia deixado em seu abdômen não estava sendo preenchido com sangue. No dia seguinte, fui vê-la em seu leito. Sua aparência era terrível, mas ela estava viva. Comecei a explicar o que lhe havia passado, mas ela tinha apenas uma pergunta: o bebê. Logo que entendeu o que havia se passado, lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. O choro também veio acompanhado de dores físicas. Eu toquei sua mão e lhe disse novamente que sentia muito. Ela, então, me pediu que a esterilizasse. Aos 21 anos, aquilo estava longe do que eu esperava ouvir. Vou discutir com ela a possibilidade de contraceptivos e o futuro logo que ela estiver um pouco mais forte.

Hoje, ela está andando, falando e comendo. E, quando me viu, sorriu pela primeira vez. Ao apertar sua mão, percebi que não fora só ela a sobrevivente da difícil cirurgia; todos nós éramos.

Sou regularmente chamado para decidir por uma cesárea, e, na maioria das vezes, consigo conduzir o parto vaginal. Há vezes em que o procedimento é necessário, e outras em que não. O desafio é acertar o “quando”. Nenhum de nós tem bola de cristal, ninguém é capaz de prever o futuro e todos erramos de tempos em tempos. Como foi dito uma vez ao homem-aranha, “com um grande poder, vem uma grande responsabilidade”. Discussões acerca da concepção de poder e sua relação com a assistência humanitária estão um pouco fora do escopo deste texto, mas no que tange a responsabilidade, eu sinto constantemente seu poder sobre mim.

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