Resposta à COVID-19 em Eswatini

O país já luta contra uma dupla epidemia de HIV/TB

Resposta à COVID-19 em Eswatini

Eswatini tem a maior porcentagem de pessoas que vivem com HIV no mundo. Quase um terço dos adultos são portadores de HIV. O país também é gravemente afetado por uma epidemia de tuberculose (TB) e cerca de 70% de todos os pacientes de tuberculose estão co-infectados com HIV.

Paralelamente, o primeiro paciente confirmado com COVID-19 foi diagnosticado em Eswatini no dia 14 de março; desde então, o número cresce diariamente.

Embora ainda não esteja claro como a COVID-19 afetará as pessoas que vivem com o HIV, sabe-se que pacientes com doenças crônicas pré-existentes e sistemas imunológicos frágeis estão em maior risco. A TB é uma doença que ataca os pulmões, como a COVID-19, e, portanto, é provável que os pacientes com TB sofram formas mais graves e complicações se forem infectados.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) luta contra a dupla epidemia de HIV/TB em Eswatini desde 2007. Na entrevista a seguir, o médico Bernhard Kerschberger, coordenador-geral de MSF em Eswatini, descreve os desafios que sua equipe enfrenta ao responder à COVID-19 em um ambiente com altas taxas de HIV e TB, e como a adaptação dos cuidados aos pacientes é importante para reduzir o risco de exposição das pessoas mais vulneráveis.

As pessoas com HIV e TB correm maior risco de serem infectadas pela COVID-19?

Nossa compreensão sobre o vírus e a doença ainda está evoluindo. Até agora, não há evidências suficientes para determinar se a COVID-19 afetará pessoas com HIV estáveis, mas com o sistema imunológico enfraquecido, diferentemente da população em geral. No entanto, as pessoas que vivem com HIV avançado, que têm baixos níveis de CD4 (células de combate à infecção) e altas cargas virais, ou que não estão em tratamento antirretroviral (ARVs), provavelmente correm maior risco de infecção no geral e precisam tomar cuidado para evitar contrair o vírus.

Ainda não temos muita experiência no tratamento de infecções por COVID-19 em pacientes com tuberculose, mas é muito provável que pessoas com TB e COVID-19 estejam mais em risco e que os resultados do tratamento sejam menos positivos (devido a danos nos pulmões).

É importante que as pessoas com TB, com altos níveis de carga viral de HIV ou outras co-infecções façam o possível para evitar a COVID-19. Estamos trabalhando para reduzir a exposição de pacientes vulneráveis, alterando a maneira como os tratamos, o que chamamos de nossos “modelos de atendimento”.

Como MSF adaptará o atendimento a pessoas com HIV/TB?

Estamos adaptando nossos modelos de atendimento. Em Eswatini, MSF trabalha há anos com modelos de atendimento baseados na comunidade, para oferecer melhor acesso aos pacientes em áreas rurais. Agora, para reduzir o risco de contato dos pacientes, estamos aproximando ainda mais os cuidados médicos dos lares, para limitar as visitas aos centros de saúde e as viagens desnecessárias de transporte público.

Entre os pacientes de maior risco estão os que sofrem de tuberculose multirresistente (TB-MDR). Para protegê-los, começamos a usar a nova tecnologia chamada Terapia Observada por Vídeo (TOV). Isso significa que os pacientes que teriam que ser supervisionados pessoalmente por um membro da comunidade ou um profissional de saúde ao tomar seus medicamentos (conforme o protocolo de tratamento) agora se filmam tomando seus remédios com um smartphone. Fornecemos a eles um smartphone equipado com um aplicativo seguro, por meio do qual eles podem enviar o vídeo para uma enfermeira. A enfermeira verifica o vídeo e acompanha se há algum possível problema com o paciente ou se o vídeo não chegar. Atualmente, tratamos 40 pacientes com TB-MDR, a maioria dos quais usará TOV.

Também criamos uma pequena clínica móvel de TB para pacientes com TB-MDR, composta por um motorista e uma enfermeira, que visitam os pacientes em suas casas para realizar exames médicos e levam alimentos e recargas de medicamentos. Antes, os pacientes precisavam buscar alimentos e medicamentos nos centros de saúde.

A maioria dos nossos pacientes estáveis com carga viral suprimida agora recebe recargas semestrais de ARVs, para que não precisem ir ao centro de saúde todos os meses. Para pacientes com tuberculose e outras condições crônicas, fornecemos medicamentos que duram de um a três meses, dependendo de sua condição de saúde e da disponibilidade de medicamentos. MSF agora oferece sessões de aconselhamento e apoio ao tratamento para pacientes e consultas médicas por telefone. O bloqueio parcial em todo o país, instituído pelo governo, nos forçou a interromper nossas atividades preventivas, como pontos móveis de teste de HIV em eventos, locais de trabalho e reuniões da comunidade. Em vez disso, estamos focando na distribuição de testes e educando as pessoas sobre como usar os autotestes de HIV.

Você tem medo de que haja uma ruptura nos estoques de medicamentos para HIV e TB no país?

As pessoas com HIV/TB precisam ter recargas com maior duração, para evitar interrupções do tratamento, pois isso os expõe ainda mais à COVID-19. As autoridades e os prestadores de serviços de saúde aqui estão trabalhando duro para estimar as necessidades e evitar a falta de estoque. Por fim, trata-se de equilibrar as necessidades com a disponibilidade de medicamentos e identificar eventuais lacunas. MSF está preenchendo algumas dessas lacunas, fornecendo medicamentos para o tratamento da TB-MDR e outras infecções oportunistas. No entanto, se o bloqueio continuar e as restrições internacionais à movimentação de mercadorias permanecerem em vigor, isso poderá afetar o fornecimento de medicamentos vindos do exterior. Muitos medicamentos genéricos vêm da Índia, por exemplo – não mais recebê-los seria extremamente preocupante e deve ser evitado.

É provável que a COVID-19 tenha impacto na epidemia de HIV/TB?

Nesta fase do surto, é muito cedo para dizer, mas certamente estamos preocupados com o fato de que qualquer redução na prestação de cuidados de saúde e/ou no acesso aos cuidados possa levar a mais doenças e mortes entre pacientes com HIV, TB ou outras doenças crônicas. Isso também pode afetar a epidemia de HIV/TB a longo prazo. Foi uma longa batalha para Eswatini romper a curva de transmissão do HIV e superar a meta internacional 90-90-90 (onde pelo menos 90% das pessoas conhecem seu status de HIV, 90% das pessoas HIV-positivo estão em ARVs e 90% delas têm o vírus suprimido). Se as estratégias médicas que permitiram que isso acontecesse não forem mantidas, é uma triste possibilidade que esses ganhos sejam revertidos. Portanto, é importante que os serviços básicos de prevenção, teste e tratamento sejam mantidos.

O número de pessoas que iniciou o tratamento de HIV nas clínicas de saúde apoiadas por MSF caiu 64% (de 44 para 16) em abril, em comparação com o mesmo mês do ano passado. Este é o menor número mensal registrado nos últimos quatro anos. Como tivemos que reduzir nossas atividades na comunidade por causa das medidas de bloqueio, distribuímos 46% menos kits de autoteste de HIV em abril (de 298 a 162) em comparação com o ano passado.

No curto prazo, não sabemos qual será o impacto, mas, no longo prazo, isso pode representar um problema real e preocupante.

Quais são as suas principais preocupações sobre a COVID-19 e a resposta em Eswatini?

O potencial impacto da COVID-19 no sistema de saúde de Eswatini é uma grande preocupação aqui, assim como em outras partes do mundo. Vemos muitos países com sistemas de saúde avançados lutando para lidar com isso e eles não têm uma epidemia de HIV/TB para gerenciar ao mesmo tempo.

Outra preocupação são os impactos indiretos da COVID-19, particularmente as consequências socioeconômicas. A maioria das pessoas aqui é bastante pobre e vive em áreas rurais. Essa é uma das razões pelas quais a taxa de TB é tão alta, pois afeta desproporcionalmente as pessoas mais pobres, forçadas a viver em agregados familiares com pouca ventilação. O gerenciamento diário de doenças como HIV e TB já é difícil e agora as restrições para reduzir a disseminação da COVID-19 dificultam ainda mais a vida dos pacientes. Para muitas pessoas, a COVID-19 está causando mais dificuldades. Alguns pacientes já estão nos dizendo que não têm comida suficiente ou não têm meios para pagar a eletricidade ou água.  

Quais são os desafios?

Definitivamente, é um desafio encontrar uma estratégia de resposta à COVID-19 que não afete o sistema de saúde a longo prazo. Nem sempre é possível copiar e colar estratégias implementadas por muitos países ocidentais ou asiáticos. A situação em Eswatini e muitos países africanos é diferente, com muitas pessoas vulneráveis que dependem dos salários diários, o que significa que medidas de distanciamento social e restrições de movimento dificultam a vida das pessoas.
Também será um desafio manter o acesso aos cuidados de saúde. O tratamento para doenças crônicas e o atendimento de emergência já foram afetados pela resposta. A capacidade de leito hospitalar está aumentando, à medida que o número de novos pacientes com COVID-19 aumenta a cada dia.

O estigma e o medo também estão dificultando a resposta. Em alguns casos, os profissionais de saúde não atenderam pacientes por medo de contrair o vírus. É compreensível que os profissionais de saúde tenham medo se não tiverem equipamentos de proteção individual suficientes nem o material e os recursos necessários para cuidar das pessoas com segurança. Essas carências são as mesmas em todo o mundo, mas, se isso se transformar em uma corrida para conseguir o que é necessário, os menos afortunados – os pacientes mais vulneráveis – podem ser deixados para trás.

O que você gostaria que acontecesse?

As autoridades de saúde de Eswatini agiram rapidamente para implementar medidas para reduzir o risco de infecção entre pessoas vulneráveis e para preparar hospitais e equipe de saúde para receber pacientes com suspeita de COVID-19 chegando às unidades de saúde. Existe muita disposição dos diferentes provedores de saúde em apoiar a resposta à COVID-19 e, se a resposta for bem coordenada, quaisquer lacunas poderão ser rapidamente identificadas e preenchidas.
É importante considerar as necessidades específicas das pessoas aqui para garantir que haja o menor impacto negativo possível em sua saúde, na capacidade de fornecer assistência médica e para que o país possa manter os ganhos obtidos no combate à dupla epidemia de HIV/TB.

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