Síria: “Hospitais não têm nem mesmo os medicamentos mais básicos”

Médico de MSF relata experiência no país

Thomas Lauvin é médico e acaba de voltar de um projeto na província de Aleppo, na Síria, onde a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) administra um hospital com um centro cirúrgico, uma maternidade, uma sala de emergência e um departamento ambulatorial. Thomas estava coordenando a assistência oferecida por MSF a médicos e voluntários na região.

O sistema de saúde é funcional no leste de Aleppo?
O colapso do sistema de saúde é claramente visível. Três ou quatro meses atrás, as pessoas achavam que a situação não era tão ruim, mas o discurso mudou e agora estão dizendo que não têm nem mesmo os medicamentos mais básicos e suprimentos, como luvas e compressas.

Eu visitava regularmente as cidades de Al Bab e Manbij, no leste da região de Aleppo, cada uma com seu hospital distrital. O hospital distrital de Al Bab tem capacidade de 220 leitos, mas nada funciona, com exceção dos serviços de diálise e pediatria, que foram reabertos em outubro, com o apoio de MSF. A equipe ainda estava presente no hospital, mas a falta de suprimentos médicos e medicamentos significava a impossibilidade de operar da instalação. Fornecemos medicamentos, suprimentos médicos e verba para abastecer o gerador com combustível, além de termos instalado o aquecimento para o inverno. Como resultado, os serviços pediátricos puderam ser reabertos depois de mais de um ano e as crianças voltaram a ser tratadas. No hospital de Manbij, que tem capacidade de 250 leitos, o departamento de emergência, o departamento ambulatorial e o pediátrico estão funcionamento em parte, apesar da falta de suprimentos. Uma bomba caiu no pátio do hospital no início de outubro, provocando prejuízos materiais e danificando as janelas. Felizmente, ninguém ficou ferido e não houve mortes e, desde então, as pessoas puderam receber cuidados.

Os pacientes deixavam o hospital com uma prescrição, mas sem garantia de que encontrariam os medicamentos ou o tratamento necessário, na medida em que os hospitais não estão mais recebendo suprimentos. Doamos medicamentos ao hospital de Manbij para resolver o problema.

Para que esses hospitais realmente se recuperem e voltem a funcionar, precisaríamos aumentar nosso envolvimento e enviar uma equipe de profissionais internacionais para lá. Devido ao tamanho desses hospitais, seria uma tarefa complexa e, infelizmente, diante da situação de segurança, não estamos em posição de fazê-lo.

Como a equipe médica consegue fazer seu trabalho?
Embora muitos médicos e enfermeiros tenham deixado a Síria, há ainda um número significativo de profissionais no país, que ainda trabalham o quanto podem. São pagos por Damasco, mas, para terem acesso ao salário, eles precisam adentrar a região de Aleppo, que é controlada por forças do governo. Há apenas uma rota autorizada para viagem a partir das regiões controladas pelos rebeldes e há atiradores nela. Todos os meses, esses profissionais médicos arriscam suas vidas para buscar seus pagamentos. O salário de um médico pode variar entre 100 e 200 dólares por mês, dependendo da taxa de câmbio. Mas, ainda assim, o dinheiro é vital para essas pessoas.

Como MSF está oferecendo ajuda humanitária aos médicos e às estruturas de saúde?
Um dos dois tipos de assistência que estamos oferecendo envolve o tratamento dos feridos. No distrito de Al Safira, a sudeste de Aleppo, MSF está prestando suporte a um grupo de cerca de 30 voluntários sírios, composto por profissionais da área médica e por pessoas que aprenderam a tratar pacientes no último ano. O grupo, que é coordenado por um médico, oferece cuidados às pessoas feridas em postos de saúde secundária, próximo o suficiente da linha de frente das batalhas para permitir o rápido acesso às pessoas, mas distante o bastante para não serem expostos. Constantemente, eles precisam adaptar-se a situações mutáveis: instalam-se onde podem e movem-se para onde têm que ir. Eles saíram do posto médico de Al Safira quando foi alvo de bombardeios, evacuaram novamente quando o exército tomou a cidade e reabriram a instalação em menos de 24 horas em um local situado a poucos quilômetros dali.

Além de treinamento médico e aconselhamento, MSF está fornecendo medicamentos e suprimentos médicos ao grupo. Estamos, também, doando combustível para abastecer as ambulâncias, já que eles não dispunham de recursos para tanto, e, claro, estamos tratando os pacientes que são encaminhados ao hospital de MSF.

O outro tipo de assistência que estamos oferecendo envolve as vítimas indiretas do conflito. Doamos medicamentos básicos aos centros de saúde para que eles possam realizar as consultas médicas, tratar doenças crônicas – como diabetes, epilepsia e hipertensão – e crianças.

Estamos prestando suporte a um grupo médico na cidade de Manbij que pretende vacinar as crianças da região. Uma dúzia de voluntários deu início à vacinação em junho e acabamos de intensificar nossa assistência a eles. Estamos fornecendo vacinas prescritas pelo programa nacional de vacinação e temos feito doações de combustível para os veículos, para que eles possam alcançar as crianças nas áreas remotas e rurais.

Há muitos deslocados internos nessa região?
No leste da região de Aleppo, a situação é muito preocupante para pessoas deslocadas. No final de setembro, a capacidade da região de receber mais deslocados havia alcançado seu limite. Mais de 200 mil pessoas foram registradas somente na região de Manbij, dobrando, efetivamente, a população local.

No final de outubro, entre 15 e 20 mil famílias deixaram o distrito de Al Safira, que estava sendo fortemente bombardeado. Muitas dessas pessoas já haviam fugido de bombardeios no sul de Al Safira, o que significa que tiveram de fugir pela segunda vez. Em muitos casos, tiveram de fugir sem poder levar nada além de suas roupas. Muitos rumaram para o norte e se estabeleceram no campo, com receio de estarem em cidades onde o risco de ataques é maior. As famílias estão, agora, vivendo em construções que foram utilizadas, no passado, para a criação de aves – estruturas em ferro, com terra batida, sem latrinas. Até 25 famílias podem estar vivendo nessas estruturas ao mesmo tempo e as condições sanitárias são terríveis. Outras famílias instalaram-se em construções não acabadas, em apartamentos sem portas ou janelas, Por vezes, até dez famílias dividem um apartamento. Mas a maioria das pessoas está nos campos, vivendo em abrigos improvisados, estruturados por lonas ou juta, ou em tendas, se têm sorte.
 
MSF e as outras poucas organizações humanitárias presentes na região estão tentando ajudar essas pessoas, distribuindo tendas, cobertores, galões e kits de higiene. Mas as necessidades são enormes e a ausência dos atores humanitários tradicionais nas áreas controladas pela oposição dificulta a tarefa.

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