Sobrevivendo à dor e ao medo: histórias angustiantes de mulheres nos campos de Benue, na Nigéria

Conflitos violentos no centro-norte da Nigéria forçaram dezenas de milhares de pessoas a abandonar suas casas nos últimos anos. Muitas foram se instalar em campos em torno de Makurdi, capital do estado de Benue. As condições de vida nos campos são precárias e a vida cotidiana é uma luta, especialmente para as mulheres. Após receber relatos de níveis alarmantes de violência sexual contra mulheres e meninas nos campos, equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão prestando atendimento médico e psicológico às sobreviventes. Algumas delas compartilharam suas histórias.

“Ele prometeu que me daria dinheiro e me pediu que o encontrasse numa casa fora do campo”, diz Iyua, mãe de seis filhos, que vive na zona rural de Mbawa, a cerca de 20 quilômetros ao norte de Makurdi, a capital do estado de Benue. Em situação financeira desesperadora, sem dinheiro emprestado para comprar comida para os filhos, ela pediu ajuda a um homem que era um conhecido. “Quando cheguei lá e ele me disse que só me ajudaria se eu tivesse relações com ele. Recusei, mas ele me forçou fisicamente”, diz ela. Após a agressão sexual, Iyua procurou tratamento na clínica de MSF que oferece atendimento a sobreviventes de violência sexual.

Mulher mostra apito que ganhou na clínica de MSF em Benue. Ele foi dado para proteger as sobreviventes que vivem em uma situação vulnerável ao abuso sexual, para ser usado para pedir ajuda se/quando se sentirem ameaçadas.
© Kasia Strek/MSF

O estado de Benue é uma região agrícola no centro-norte da Nigéria, muitas vezes conhecida como cesta alimentar da Nigéria, atravessada pela segunda maior via navegável do país, o rio Benue. Nos últimos anos, a insegurança no norte da Nigéria forçou muitos pastores a deslocarem-se para o sul e para a região centro-norte, enquanto as alterações climáticas e a degradação ambiental reduziram a disponibilidade de terras férteis.

A promulgação de uma lei em 2017 que proíbe o pastoreio aberto levou ao êxodo de pastores do estado de Benue que não conseguiam mais sustentar o seu modo de vida tradicional, levando a uma intensificação dos confrontos armados entre pastores e agricultores. A violência provocada por estes confrontos deslocou quase 400 mil pessoas das suas casas, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), com muitas delas indo se instalar em campos em todo o estado de Benue.

As pessoas trabalham em um moinho de arroz localizado na entrada da cidade de Makurdi. © Kasia Strek/MSF

A vida nos campos é uma luta. As condições de vida são precárias e insalubres, ao mesmo tempo em que há grave escassez de alimentos, água potável e serviços básicos, incluindo cuidados de saúde. Há também níveis alarmantes de violência sexual, agravados pelo empobrecimento, pelos desequilíbrios de poder entre mulheres e homens, pelos meios limitados de que as pessoas dispõem para ganhar a vida e pelo contexto mais amplo de violência. De acordo com dados de MSF, a maioria dos perpetradores de violência sexual são parceiros íntimos de sobreviventes, mas a violência sexual também é realizada por conhecidos e estranhos, sejam civis ou não civis. Muitas mulheres são por muitas vezes as únicas provedoras das suas famílias, e não têm outra escolha senão abandonar os campos em busca de alimentos e madeira para combustível, expondo-se ao risco de violência sexual.

 

As sobreviventes da violência sexual, tanto no estado de Benue como em toda a Nigéria, merecem acesso a cuidados médicos gratuitos e de qualidade e a apoio à saúde mental” – coordenador do projeto de MSF, Resit Elcin.

 

A sobrevivente Doshima

Dooshima, uma estudante nigeriana, estava um dia trabalhando em uma fazenda quando foi forçada pela mãe e pela irmã a passear de moto com homens nos quais ela não conhecia. “Quando nos aproximávamos de uma aldeia, uma multidão começou a gritar, cantar e aplaudir”, diz ela. “Eu reconheci canções de casamento.” Naquele momento, Dooshima percebeu que ela havia sido vendida por sua família para se casar. Seu desespero era tamanho que ela se lembra de ter se perguntado se tinha alguma coisa consigo que pudesse usar para tirar a própria vida.

Após o casamento com um homem 30 anos mais velho que ela, Dooshima foi trancada em uma pequena casa. Ela tentou escapar, mas foi recapturada e espancada. Depois de três dias mantida prisioneira, seu marido entrou em casa e a violentou. Dooshima fugiu novamente e, desta vez, evitou ser recapturada.

Chegando em casa, Dooshima foi rejeitada pela família. “Minha mãe não queria me ver nunca mais”, diz ela. “Ela pegou todos os meus pertences, inclusive uniforme escolar e livros, e queimou tudo”.

Depois de procurar tratamento médico com MSF, Dooshima descobriu que estava grávida e decidiu interromper a gravidez. Agora, Dooshima vende laranjas para ganhar dinheiro suficiente para substituir as roupas que sua mãe queimou. Ela planeja aprender a costurar para poder ganhar o suficiente para comprar livros e voltar a estudar. Acima de tudo, ela quer continuar seus estudos. “Eu gostaria de me tornar médica e salvar vidas”, diz ela.

Dooshima espera voltar à escola e continuar seus estudos. © Kasia Strek/MSF
O relato de Shiana

Shiana mudou-se para o campo de Mbawa há cinco anos com a sua irmã mais velha. Ela deu à luz dois bebês, mas ambos morreram na primeira infância. Desde a infância, ela vive com uma deficiência. “Eu estava dormindo quando alguém bateu na minha porta à noite”, diz ela. “O homem prometeu me trazer algo para comer, depois forçou a porta da minha barraca, pois a fechadura estava quebrada, e insistiu em ter relações sexuais comigo. Recusei e tentei afastá-lo, mas ele apertou meus braços e me violentou.”

Shiana foi abusada sexualmente duas vezes por homens que invadiram sua tenda aproveitando-se de sua deficiência física. “Ontem à noite, novamente, um homem veio e tentou entrar, mas acordei rápido e bloqueei a porta por dentro. Isso acontece frequentemente no acampamento”, diz ela. Shiana não tem meios de ganhar dinheiro, mas às vezes vai até um mercado próximo para pegar grãos derramados no chão, que ela coleta e vende.

Um beco abandonado no acampamento Mbawa. © Kasia Strek/MSF

As mulheres e as meninas precisam de acesso a serviços, incluindo habitação segura e abrigo de emergência, assistência jurídica e meios de subsistência e apoio financeiro. A chave para prevenir a violência sexual é atender às necessidades humanitárias das pessoas e garantir que as mulheres vulneráveis estejam seguras dentro dos campos”- coordenador do projeto de MSF, Resit Elcin.

 

As violências contra Seember

A algumas tendas de distância de Shiana mora Seember. O marido dela era um fazendeiro que foi morto em um ataque noturno. “Meu marido foi capturado e baleado quando tentou fugir de casa”, lembra Seember. “Ele estava morto no chão quando outro homem apareceu e cortou sua cabeça com um facão.” Seember e os seus dois filhos escaparam e fugiram para o campo de Mbawa. Em abril de 2023, ela trabalhava fazendo a colheita com outras mulheres quando foram emboscadas por cinco homens – três armados e dois com catanas (uma espada japonesa). Ela relata que os homens discutiram se deveriam matá-las, e que decidiram violentá-las.

“Quando vi esses homens chegando ao campo, fiquei com raiva”, diz ela. “Pensei na morte do meu marido e pensei que era a minha vez de deixar este mundo, mas evitei me defender dos estupradores para poder permanecer viva para cuidar dos meus filhos.”

A violência sexual deixou Seember incapaz de andar sem auxílio de alguém. Um parente a levou à clínica de MSF no campo de Mbawa, onde ela recebeu cuidados médicos e apoio de saúde mental.

Seember diz que se sente muito sozinha sem o marido e que em vários momentos as lembranças perturbadoras voltam à tona. Seu filho adolescente, Fanan, faz o possível para confortá-la e distraí-la, fazendo-a rir ou trançando seus cabelos.

Medicamentos usados para tratar sobreviventes de violência sexual na clínica de MSF no campo de Mbawa. © Kasia Strek/MSF
Crescentes riscos às mulheres

Iyua, Dooshima , Shiana e Seember são apenas quatro entre milhares de mulheres e meninas que vivem em campos no estado de Benue e que sobreviveram à violência sexual. Sem medidas preventivas, MSF alerta que os riscos para as mulheres continuarão aumentando.

“É importante destacar que o ambiente social não está melhorando”, diz o coordenador do projeto de MSF, Resit Elcin. “Há falta de opções de subsistência para as pessoas deslocadas, especialmente para as mulheres, e os esforços de proteção e prevenção mal são implementados. A situação não está melhorando.”

“As sobreviventes da violência sexual, tanto no estado de Benue como em toda a Nigéria, merecem acesso a cuidados médicos gratuitos e de qualidade e a apoio à saúde mental”, explica Resit. “As mulheres e as meninas precisam de acesso a serviços, incluindo habitação segura e abrigo de emergência, assistência jurídica e meios de subsistência e apoio financeiro. A chave para prevenir a violência sexual é atender às necessidades humanitárias das pessoas e garantir que as mulheres vulneráveis estejam seguras dentro dos campos.”

“As organizações humanitárias e de desenvolvimento, tanto locais como internacionais, devem trabalhar em conjunto com as autoridades nigerianas para garantir que o apoio médico e psicológico esteja disponível gratuitamente aos sobreviventes da violência sexual no estado de Benue e, de forma mais ampla, para apoiar as comunidades deslocadas a recuperar a sua dignidade e controle sobre suas vidas”, diz Resit.

 

MSF lançou uma resposta de emergência para atender pessoas deslocadas no estado de Benue em 2018, levando para elas cuidados médicos, incluindo cuidados de saúde sexual e reprodutiva e cuidados abrangentes para sobreviventes de violência sexual. Em 2023, as equipes de MSF em Benue trataram mais de 1.700 sobreviventes de violência sexual.

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos pacientes.

**Ao longo da nossa intervenção, MSF apoiou principalmente comunidades agrícolas deslocadas e comunidades anfitriãs ao redor dos campos de deslocados internos. É necessário fazer mais para compreender as necessidades humanitárias e de saúde das comunidades pastoris e o impacto da violência nas suas vidas.

 

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