Sobreviventes da guerra em Gaza relatam repetidos traumas, entre mortes a deslocamentos

Profissionais de MSF que vivem em Gaza narram os obstáculos à sobrevivência na guerra que já deixou pelo menos 38 mil pessoas mortas: “Elas jamais voltarão”

Khan Younis, no sul de Gaza, em ruínas após a retirada das forças israelenses. Abril de 2024. ©Ben Milpas/MSF

Desde o início da terrível guerra em Gaza, pelo menos 38 mil palestinos, mais da metade dos quais mulheres e crianças, foram mortos e outros 87 mil ficaram feridos. Para as pessoas que conseguiram sobreviver ao ataque implacável com explosões, bombardeios e tiros, permanecer vivo significa mover-se constantemente de um lugar para outro, com os poucos itens básicos que conseguem carregar.

No entanto, não importa para onde se desloquem as pessoas: testemunhos de profissionais e pacientes de Médicos Sem Fronteiras (MSF), recolhidos ao longo dos últimos nove meses, mostram de forma evidente que nenhum lugar é seguro em Gaza.

As equipes de MSF que trabalham em toda a Faixa de Gaza, buscando fornecer cuidados essenciais e que salvam vidas para as pessoas feridas nos implacáveis ataques israelenses, também foram forçadas a fugir para salvar suas vidas.

Kamil*, enfermeiro de emergência de MSF, e Haider*, vigia de MSF, faziam parte de nossa equipe no hospital Al-Shifa, em Gaza, durante os bombardeios entre outubro e novembro de 2023. Eles foram deslocados 18 vezes até hoje.

“Quando a guerra começou, continuamos morando em casa por quatro dias”, disse Kamil. “Meus filhos naquela época acordavam e esperavam por mim, e eu os segurava e começava a acalmá-los e distraí-los, dizendo que eram fogos de artifício, não bombardeios. Foi muito, muito difícil.”

No quinto dia da guerra, o último andar do prédio de Kamil foi atingido por um foguete. Ele e seus filhos se mudaram para o escritório de MSF e passaram a viver com outros integrantes da equipe, incluindo Haider, cuja esposa e filhos permaneceram na casa da família, em um bairro mais seguro no norte de Gaza.

Meus filhos naquela época acordavam e esperavam por mim, e eu os segurava e começava a acalmá-los e distraí-los, dizendo que eram fogos de artifício, não bombardeios. Foi muito, muito difícil.”
Kamil, enfermeiro de emergência de MSF

Kamil, Haider e outros profissionais de Médicos Sem Fronteiras continuaram trabalhando diariamente na clínica de MSF para vítimas de queimaduras e no Hospital Al-Shifa, que estava lotado de pacientes com queimaduras graves e ferimentos por estilhaços.

“Os pacientes que atendi durante esta guerra são diferentes das guerras anteriores”, diz Kamil. “Muitos têm queimaduras profundas, com estilhaços. Muitos perderam membros ou têm feridas infectadas. Nunca esquecerei o cheiro da infecção – cheira a óleo estragado.”

“Recebíamos de 30 a 40 pacientes todos os dias na clínica, enquanto trabalhávamos e tratávamos dezenas de outros no Hospital Al-Shifa”, diz Haider. “Continuamos fazendo isso por 40 dias, até que as coisas ficaram muito perigosas. O exército israelense começou a se aproximar do hospital, na nossa direção.”

No início de novembro de 2023, pelo menos 75 pessoas – profissionais de MSF e suas famílias – estavam abrigadas na clínica e na casa de MSF enquanto os confrontos ocorriam do lado de fora. “A situação estava muito ruim e estávamos todos com medo”, lembra Haider. “Se abríssemos a porta, víamos fogo e tiros. Eles estavam atirando nas pessoas na rua.”

Nas semanas seguintes, as condições de vida da equipe se deterioraram rapidamente. “Naquelas semanas, não tínhamos água suficiente para nos limparmos ou para beber”, conta Haider. “Não tínhamos comida suficiente. Duas semanas depois, estávamos completamente sem água.”

Tiros e bombardeios

Em meados de novembro, a situação tornou-se insustentável para nossa equipe na Cidade de Gaza, com confrontos e bombardeios cercando o Hospital Al-Shifa, a clínica de MSF, o escritório e a casa de MSF. Foi então tomada a decisão de evacuar.

No dia 18 de novembro, um comboio de MSF partiu para o sul de Gaza, organizado com a aprovação das autoridades israelenses. No entanto, após ser impedido de passar pelo posto de controle israelense na estrada para o sul, o comboio de MSF foi obrigado a voltar para a casa.

Em um dos carros estavam Kamil e o enfermeiro de MSF Alaa Al-Shawaa, junto com suas famílias. No caminho de volta, a aproximadamente 500 metros da clínica de MSF, eles viram dois tanques israelenses do lado de fora do Hospital Al Shifa, além de atiradores de elite no topo dos prédios ao redor.

Quando vi que ele estava morto, entrei em choque. Eu não conseguia me controlar, não conseguia pensar e eu desabei na beira da estrada.”
Haider, vigia de MSF

Naquele momento, as forças israelenses abriram fogo contra o carro, e Alaa sofreu um ferimento de bala na cabeça. “As balas passaram perto da minha testa, e uma delas perfurou a cabeça de Alaa”, relata Kamil. “Ele estava curvado, com a cabeça apoiada no volante, perto dos meus braços, então foi difícil para mim continuar dirigindo”, narra Kamil. “Havia sangue por todo o carro. Eu estava tentando virar à direita em direção ao escritório de MSF e seguir os três primeiros carros, que conseguiram virar antes de começarem a atirar.”

Kamil e o resto do comboio conseguiram escapar do tiroteio e alcançar com relativa segurança para a clínica de MSF. Depois de estacionarem, carregaram Alaa do banco do passageiro do carro para a clínica, mas não conseguiram reanimá-lo.

“Quando vi que ele estava morto, entrei em choque”, diz Haider. “Eu não conseguia me controlar, não conseguia pensar e eu desabei na beira da estrada.”

Nos dias seguintes, a equipe e suas famílias permaneceram reclusas na clínica e na casa de MSF. Enquanto estavam lá, as forças israelenses se aproximaram da clínica com uma escavadeira, empurrando o comboio de carros de MSF e os queimando.

Khan Younis, no sul de Gaza, em ruínas. Abril de 2024. ©Ben Milpas/MSF

Depois de mais alguns dias terríveis de tiroteios em torno da clínica e da casa de MSF, entrou em vigor um cessar-fogo entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, em 24 de novembro. Forças israelenses deixaram a área e um comboio foi mais uma vez organizado com as autoridades israelenses para permitir que a equipe de MSF e suas famílias se mudassem para o Sul. Desta vez, eles conseguiram.

Quando a equipe de MSF chegou ao sul de Gaza, ficou no abrigo Lotus de MSF, na cidade de Khan Younis, e continuou trabalhando. Kamil viajava diariamente para o Hospital Europeu de Gaza, proporcionando atendimento aos pacientes feridos. Haider continuou levando as equipes médicas ao Hospital Indonésio e cuidando da segurança dos profissionais.

Vinte pessoas da minha família foram mortas naquela semana. Minha avó ficou tão triste que, logo depois, ela também morreu.”
Haider, vigia de MSF

Uma semana depois, Haider recebeu uma notícia devastadora.

“Naquela época, outro tipo de sofrimento começou”, diz Haider. “Recebi a notícia de que minha irmã e seus filhos foram mortos na cidade de Gaza. Entrei em depressão. Depois, uma das minhas sobrinhas e seus filhos foram mortos. Em seguida, no Sul, meu sobrinho, sua esposa e seus filhos foram todos mortos depois que uma escavadeira invadiu a casa deles. Vinte pessoas da minha família foram mortas naquela semana. Minha avó ficou tão triste que, logo depois, ela também morreu. Quando tudo isso aconteceu, eu estava em um lugar muito sombrio, mas estava tentando continuar trabalhando.”

A invasão a Rafah

Em 8 de janeiro, cerca de dois meses depois da chegada de Kamil e Haider ao sul de Gaza, um bombardeio de tanque israelense atingiu o abrigo Lotus, matando a filha de 5 anos de um integrante da equipe de MSF e ferindo outras três pessoas. Após o ataque, mais de 125 profissionais de MSF e suas famílias foram realocados para a Universidade ACAS em Rafah, a um quilômetro da fronteira com o Egito. Eles ficaram lá pelos dois meses seguintes.

Assista:
A trajetória do projétil que atingiu abrigo de MSF em Gaza e deixou uma criança morta

“Estávamos constantemente com medo, mas não tínhamos outras opções”, diz Haider. “Havia bombardeios e tiroteios. Uma vez eles bombardearam um prédio ao nosso lado e os estilhaços atingiram a universidade. Vivemos assim por um tempo, até que anunciaram a invasão de Rafah.”

Desde a invasão de Rafah, Kamil e Haider, como milhares de outros palestinos, praticamente não pararam de se deslocar devido aos bombardeios incessantes e ataques em toda a área sul e central de Gaza.

Haider tem se deslocado de um lugar para outro pela região de Al-Mawasi, morando em uma tenda. “Fui deslocado à força oito vezes, uma média de uma vez por mês”, diz ele. “Há dois dias, houve outro deslocamento. Não dormi por 24 horas enquanto nos movíamos de um lugar para outro por causa das explosões. Estou sempre pensando na minha esposa e filhos no norte de Gaza, e sofro todos os dias.”

As condições de vida são desesperadoras para Haider e milhares de outras pessoas em movimento. Desde que foram forçados a deixar Rafah, Kamil e seus filhos têm se mudado várias vezes na região de Al-Mawasi e no acampamento de Al-Bureij, na área central. Atualmente, estão em Al-Bureij, mas ele enfatiza que nenhum lugar está seguro dos bombardeios.

“Nenhum lugar é seguro e as condições são terríveis”, diz Kamil. “Não temos comida suficiente, água, medicamentos ou roupas. Não há sapatos. Não há nada. É muito difícil ver meus filhos assim.”

Kamil só pode imaginar o trauma mental sofrido por seus filhos como resultado de suas experiências. “É traumático”, afirma Kamil. “Ainda ontem as crianças estavam brincando com meus sobrinhos e ouvi eles contando a história de Alaa, eles continuam contando a história de Alaa. Eles estão traumatizados até agora.”

Segundo a Organização das Nações Unidas, 90% dos habitantes de Gaza foram deslocados pelo menos uma vez desde a escalada brutal da guerra entre Israel e o Hamas. A maioria deles foram forçados a viver em condições terríveis. Para Haider, o seu único desejo é se reunir com a sua família em Gaza e que o banho de sangue acabe.

“Já chega. Chega de mortes, chega de bombardeios, chega de tiroteios”, desabafa Haider. “Você pode reconstruir sua casa, você pode reconstruir qualquer coisa. Mas o que você não pode fazer é trazer de volta as pessoas que nos deixaram. Elas jamais voltarão.”

* Os nomes foram alterados para proteger a identidade

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