Sobreviventes de conflitos no Sudão relatam violência: “Vi muitos corpos no meu caminho”

Testemunhos de sudaneses atendidos por MSF no Chade denunciam violência direcionada a determinadas etnias.

Sobrevivente mostra projétil que a atingiu. Foto: Mohammad Ghannam/MSF

Quando o atual conflito no Sudão teve início, em meados de abril, a região de Darfur já enfrentava guerra e violência étnica há mais de duas décadas. O conflito atual reacendeu as divisões entre as comunidades em Darfur, particularmente na cidade de El Geneina. Um grande número de pacientes atendidos por Médicos Sem Fronteiras (MSF) diz que foi atacado por milícias árabes em El Geneina e durante a fuga para o Chade. Eles contam que foram alvos por causa de sua etnia Masalit. Estes são alguns dos relatos reunidos por nossas equipes nas últimas semanas.

Nos disseram que aquele não era o nosso país e nos deram duas opções: partir imediatamente para o Chade ou morrer.”
– H., 26 anos, sobrevivente dos conflitos no Sudão.

“Eu e minhas duas filhas, junto com minha mãe e quatro de minhas irmãs, nos mudamos para um abrigo coletivo no bairro de Al Madares. O abrigo não era seguro, no entanto. O bairro estava sob constantes bombardeios e tiros. Milícias árabes estavam atacando civis em abrigos e complexos. Por um tempo, comemos algumas lentilhas e farinha de milho, mas acabaram depois de um mês.

Durante esse tempo, não tivemos acesso a cuidados médicos ou qualquer medicamento. Então milícias árabes nos atacaram no abrigo. Nos disseram que aquele não era o nosso país e nos deram duas opções: partir imediatamente para o Chade ou morrer. Eles pegaram alguns homens, e eu os vi atirando neles nas ruas, sem ninguém para enterrar os corpos. Então fugimos em um grande grupo.”

Vários testemunhos ecoam ameaças semelhantes e relatam ataques recorrentes em bairros como Al Madares, Al Jabal, Área 13 e Al Jamarik, assim como a presença de franco-atiradores que têm como alvos os civis que tentam buscar água ou suprimentos. Outros pacientes se lembram da violência contínua de base étnica no caminho para o Chade e nas dezenas de postos de controle.

Muitas pessoas não conseguiram chegar ao Chade e foram mortas só porque eram Masalit.”
– K., 44 anos, sobrevivente dos conflitos no Sudão.

“Em 18 de junho, paguei a um motorista árabe armado 300 mil libras sudanesas [cerca de 2.400 reais] para levar minha esposa e filhos até Adré [no Chade]. Eu não podia sair com eles porque o motorista disse que não era seguro para minha família se eu estivesse por perto, eles saberiam que somos da etnia Masalit. Em 25 de junho, fui para as colinas no norte de El Geneina para tentar obter algum sinal de celular. Vi pelo menos 20 corpos quando olhei para o vale. Pedi a Deus para me salvar e me permitir encontrar a minha família.

Saí em 28 de junho e, em todos os postos de controle, o motorista dizia ‘ele é um de nós’ e ficávamos bem. Claro, eu paguei muito dinheiro para ele dizer isso, e muitas pessoas não conseguiram chegar ao Chade e foram mortas só porque eram Masalit.”

Muitos fatores levaram uma grande parte da população Masalit de El Geneina a tentar fugir para o Chade em meados de junho, após várias semanas de confrontos e violência: o assassinato do governador de Darfur Ocidental, Khamis Abakar; ameaças crescentes; relatos de um massacre durante uma tentativa de chegar a um acampamento do exército sudanês em Ardamatta, uma área na parte oriental da cidade.

Não podíamos ajudar ou carregar os mortos e feridos, todos estavam correndo por sua vida.”
– A., 40 anos, sobrevivente dos conflitos no Sudão.

“Na noite de quarta-feira, 14 de junho, já estava cansado e senti que não havia como ficar. Saí de casa com minha família e cerca de 200 pessoas em direção a Ardamatta, no nordeste de El Geneina. Quando chegamos à área de Al Naseem, começaram a atirar em nós dos telhados dos edifícios. Todos estavam correndo em todas as direções. Eles mataram muitos de nós, foi um massacre.

Não podíamos ajudar ou carregar os mortos e feridos, todos estavam correndo por sua vida. Corri com minha mulher, nosso bebê de 1 ano de idade e um pequeno grupo de outras pessoas. Chegamos ao bairro de Al Madares e seguimos em frente. Fomos para o oeste e enfrentamos mais milícias árabes que pegaram nosso dinheiro e telefones. Oito dos meus filhos estão no acampamento militar de Ardamatta, e não sei se estão bem porque a comunicação é muito difícil. Espero que estejam seguros.”

A viagem para o Chade, a única rota de fuga, era extremamente perigosa. Os sobreviventes disseram que usaram vários meios para chegar até lá: a pé, em comboios e em veículos cujos motoristas podiam garantir a passagem deles por grandes somas de dinheiro. Além do risco de serem roubados, agredidos, violentados ou mortos nos postos de controle, muitos pacientes relataram que homens armados atiraram em pessoas que fugiam.

Aqueles que não morreram lá é porque estavam mais distantes dos atiradores.”
– L., 36 anos, sobrevivente dos conflitos no Sudão.

“Mulheres e crianças se reuniram na área de Al Jamarik às quatro horas da manhã. Nosso plano era começar a caminhar para o oeste [em direção ao Chade]. Então os homens se juntaram a nós – alguns tinham armas e carros para defender as pessoas ao longo do caminho.

Fomos atacados enquanto atravessávamos uma cidade chamada Shukri. Muitos foram mortos pelos moradores locais. Aqueles que não morreram lá é porque estavam mais distantes dos atiradores ou outras pessoas na frente deles foram atingidas. Essa é a única maneira de alguns de nós sobrevivermos.”

Para onde quer que olhasse, via a morte. Acredite ou não, a morte tem um cheiro, e eu podia senti-lo.”
– C., 40 anos, sobrevivente dos conflitos no Sudão.

Em vários relatos, a cidade de Shukri é mencionada como um dos pontos mais perigosos da rota.

“Em Shukri, um pequeno grupo nos parou e nos pediu para sentar. Eu estava com medo, orei a Deus para me tirar de lá vivo. Começamos a correr, e os homens armados estavam atirando nas pessoas aleatoriamente. Levei um tiro no pé direito. Eu estava sangrando, mas não parei de andar. A certa altura, peguei meu turbante branco, envolvi meu pé nele e não parei, embora estivesse cansada, tonta e com uma forte dor de cabeça.

Eu me sentia perdida. Nunca tive tanta sede na minha vida, e a pouca água que tínhamos, guardamos para minha filha. Para onde quer que olhasse, via a morte. Acredite ou não, a morte tem um cheiro, e eu podia sentir o cheiro. Vi muitos corpos no meu caminho. Pensei que poderia me juntar a esses corpos em alguns momentos. Mas, felizmente, chegamos à fronteira. Foi quando vi um veículo branco pertencente a Médicos Sem Fronteiras, que me pegou e nos levou para o hospital em Adré, onde fui tratada e cuidada.”

 

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